quarta-feira, 29 de maio de 2013

O desafio da leitura



Doutora em Letras pela Universidade de São Paulo, a escritora e palestrante fluminense Luzia de Maria dedica-se há mais de três décadas ao tema leitura – com 15 livros publicados, é uma das maiores especialistas do país no assunto. Nesta entrevista, Luzia, que está lançando O clube do livro: Ser leitor – que diferença faz (Globo), aborda as experiências de seu clube de leitura no Rio de Janeiro, nos anos 1980, e mostra como fisgar os jovens para a leitura. Sua forma informal de tratar o assunto conquista as platéias – inclusive por aqui, na Revista Superpedido, tanto que, na próxima edição, a professora voltará para falar um pouco mais sobre a dupla livraria e leitura. A primeira parte começa aqui...


Na formação de um leitor, é indispensável preservar o prazer da leitura. E para se preservar esse prazer, a liberdade de escolha é um dos pontos primordiais

Em seu clube do livro, alunos chegavam a ler cinquenta, setenta livros em um ano escolar. Como fazer desabrochar essa descoberta da leitura nos jovens?

O ideal é que os livros e as histórias sejam apresentados às crianças muito antes do convívio escolar. Minhas filhas e, agora, minha neta ganharam os primeiros livros junto com os primeiros brinquedos. Costumo dizer: o bebê já sabe pegar chocalho? Está na hora de pegar aqueles livros miudinhos, feitos em papel cartonado, que estão cada vez mais lindos, com bichinhos de pelúcia nas capas, olhos que mexem, rabos que balançam, etc. Mas na escola brasileira, infelizmente, muitos estudantes chegam ao ensino médio sem nunca ter experimentado o prazer da leitura de um bom livro. E alguns trazem marcas de desprazer: receberam a obrigação de ler livros para os quais não tinham interesse nem maturidade de leitor para apreciar a leitura. Na formação de um leitor, é indispensável preservar o prazer da leitura. E para se preservar esse prazer, a liberdade de escolha é um dos pontos primordiais.

Como a escola pode apresentá-lo a esse prazer?

Para que um jovem seja cativado para o mundo dos livros, a escola precisa estimulá-lo a explorar esse mundo, a perambular por ele, a começar a leitura de um livro, dois, três, e se não gostar, largar pra lá, até encontrar um que o arrebate sem ele nem perceber e, quando ele menos esperar, o impacto final da história bate em seu rosto, ele vira a página e percebe que o livro chegou ao fim... e ele sente pena de ter acabado. Assim, ele sai da leitura com desejo de ler outro livro e mais outro e outro, perde a vergonha de entrar na biblioteca ou na livraria e caminhar a esmo, em busca nem sabe bem do quê. É essa fome, esse desejo de uma boa história, de um bom livro, que forma público para a literatura. E isso precisa ser exercitado nas escolas. Assim como elas têm incentivado os esportes, tornado frequentes os campeonatos escolares (permitindo que cada um tenha sua preferência, vôlei, basquete, futebol, etc. ou escolha a sua posição nos jogos e formando esse público que lota os estádios brasileiros), assim também a escola precisa acordar e formar público para teatros, cinemas, museus e, evidentemente, para as livrarias e bibliotecas.

Você acha que deixar aos alunos a liberdade de escolha é suficiente para se formar leitores?

Não, principalmente quando são alunos dos anos finais do ensino fundamental ou do ensino médio. Como já se depararam com livros cuja leitura não os encantou, simplesmente cobrados em provas, muitos estudantes generalizam e passam a crer que qualquer leitura é chata. A experiência que relatei em O clube do livro, em que estudantes do ensino médio chegaram a ler 70 títulos em um ano, era uma proposta de trabalho, com avaliação da qualidade da leitura e da quantidade de leitura. Deviam ler um mínimo de 5 livros por bimestre. Quem os seduziu para que lessem além de minha expectativa foi a literatura. Penso que muitas pessoas que não são leitoras nunca tiveram, em casa ou na escola, a experiência de ler um bom livro. Para gostar, é preciso experimentar. Alguns dos ex-alunos que escreveram depoimentos sobre aquela imersão na leitura – hoje profissionais bem sucedidos, com 37, 38 anos –  confessam que, no início, foram obrigados a ler. Assim como tinham que estudar matemática ou geografia. Mas ninguém foi obrigado a ler um determinado livro.

Quais eram, então, as regras do clube?

Eles podiam ler um livro sugerido por mim ou sugerido por um colega, porque eu afirmei que ele era ótimo ou porque o colega leu e gostou. Podiam começar a ler vários e abandonar, até encontrar um de seu agrado. E quando eu defendo que cada aluno compre um livro diferente do outro, autores, editores e livreiros podem não ficar muito satisfeitos e desconfiar que terão prejuízo já que em vez de venderem 40 livros para a turma, ou 400 para toda a escola, terão uma venda avulsa. Mas em setembro daquele ano, quando deveria haver 40 livros circulando na classe, sendo lidos por eles em sistema de troca, havia 165 livros em uma de minhas turmas, 119 em outra e em torno de 100 na terceira turma. Isso em uma escola pública. E agora, 22 anos depois, ao reencontrar esses ex-alunos, pude perceber que todos são leitores, continuam comprando livros para eles e para os filhos. São pessoas cultas e interessantes, o que se pode constatar pelos seus depoimentos no livro. Isso sem falar na formidável ascensão social que todos tiveram, graças ao estudo, aos livros, à leitura.

Quais as principais diferenças dos leitores de 20 anos atrás para os leitores de hoje? Quais os novos desafios e oportunidades surgidos nesse intervalo de duas décadas?

O que move o homem em direção ao conhecimento é a curiosidade. Em relação à leitura também. Neste sentido, vejo minha neta, de apenas dois anos, repetir atitudes que testemunhei em minhas filhas, vejo o mesmo brilho em seus olhos e o mesmo encantamento diante de livros maravilhosos. Com pouco mais de um ano de idade e ainda poucos recursos para se expressar, em passeios pelo bairro, ao chegar à calçada da Livraria Gutenberg, em Niterói, exigia: “Tira! Tira!”, para que abríssemos as fivelas do cinto e a deixássemos sair do carrinho. Objetivo: entrar e ir decidida até o fundo da livraria, sentar na cadeirinha em torno da pequena mesa e se deliciar com os inúmeros livros de historias postos ao seu alcance. Mudam os tempos, os livros hoje são muito mais sofisticados que há duas ou três décadas, mas a essência do ser humano é a mesma. E se cuidamos para não matar a curiosidade de nossas crianças, certamente elas se tornarão adultos para sempre enamorados do conhecimento, das descobertas, do prazer de aprender.

Mesmo que elas não sejam fisgadas quando crianças, ainda será possível apresentar a leitura um tanto mais tarde, correto?

Sem dúvida. Em palestras a estudantes, em escolas da rede privada ou pública, também tenho testemunhado brilho nos olhos quando consigo unir a excelência da literatura à minha paixão por ela, e isso me faz crer que os jovens de hoje são tal e qual os de ontem. São capazes de se encantar, são capazes de sentir empatia em relação ao outro e é isso que a literatura oferece: ela nos aproxima de outros seres humanos, nos ajuda a enxergar pelos olhos do outro, cria laços entre leitor e autor; cria laços entre leitores de uma mesma obra, de um mesmo autor. E quanto à leitura, de um modo geral, o grande desafio é que temos hoje mais ofertas de lazer, mais opções do que fazer e por isso precisamos ser seletivos e administrar o tempo. Mas o computador, hoje, tem nos levado a ler mais. E, infelizmente, quem não é leitor, pouco se beneficia do amplo universo que o computador nos oferece. É um equívoco achar que o brasileiro estará inserido na era da informática sem antes ter-se apoderado dos benefícios da era da imprensa, sem antes se locomover com desenvoltura no universo letrado. É preciso cuidar para termos um país leitor, só assim ele poderá verdadeiramente explorar e usufruir, em termos de crescimento social e econômico, o que as novas tecnologias oferecem. 

Fonte: Revista SuperPedido Tecmedd

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