sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Escola, leitura e escrita: a necessidade de um olhar externo

Cultura escrita e pensamento crítico

POR Silvia Castrillón


Presidente da Associação Colombiana de Leitura e Escrita (Asolectura), é formada em Biblioteconomia e especializada em Educação. É uma das mais destacadas autoridades latinoamericanas no desenvolvimento de bibliotecas.
Presidente da Associação Colombiana de Leitura e Escrita (Asolectura), é formada em Biblioteconomia e especializada em Educação. É uma das mais destacadas autoridades latinoamericanas no desenvolvimento de bibliotecasEspecialista em políticas públicas de apoio à leitura e escrita, trabalha na concepção e implantação de projetos e campanhas de fomento ao livro e à leitura e bibliotecas públicas e escolares.
Durante sua direção, a Fundação para o Fomento à Leitura (Fundalectura) recebeu em 1995 o premio IBBY-ASAHI, a mais importante distinção outorgada ao trabalho na promoção de leitura. Participa do comitê executivo da IBBY (International Board on Books for Young People) e é consultora de organismos internacionais como a Unesco, a Organização dos Estados Americanos, Organização dos Estados Íbero-Americanos, Cerlalc e ONU, entre outros. Autora do livro O direito de ler e de esrever (Pulo do Gato).

As considerações que apresento a seguir são fruto de uma reflexão mantida com grupos de professoras e professores de Bogotá.

Partimos de uma realidade adversa: as escolas não possuem espaços para uma reflexão que lhes permita tomar distância frente a suas práticas pedagógicas, observá-las “de fora”, de tal maneira que seja possível analisá-las, posicioná-las no contexto histórico e local que as determina, e pensar nelas como processos que têm, ou deveriam ter, consequências em longo prazo.

Isso ocorre, entre outros motivos, porque os modelos educativos que se impõem, “onde a única coisa que conta são os objetivos alcançados e os resultados educativos que se “espera” que os alunos alcancem depois de um período de tempo” (Fernando Bárcena e Joan-Carles Mèlich. La educación como acontecimiento ético) que pretendem formar pessoas competentes para um trabalho – mesmo que incerto –, “deixam a educação sob o domínio do planejamento tecnológico” que não dá lugar ao pensamento nem à reflexão. Tais modelos deixam de lado, de acordo com as palavras de Bárcena e Mèlich, a educação como acontecimento ético.

Os professores conhecem bem sua prática, mas necessitam submetê-la a um olhar externo que propicie o distanciamento ou estranhamento, como propõe a dramaturgia brechtiana. Um olhar externo que, ademais, leve consigo a teoria – que tampouco os professores desconhecem –, mas que, de novo, não contam com as condições que lhes permitam libertar-se dos modismos que regem a circulação da teoria na academia; apropriar-se e ter com ela um contato mais profundo e, sobretudo, fazer uso da teoria para submeter sua prática à observação, e entender melhor os objetivos de seu trabalho e, para o caso da formação de leitores, verificar se suas práticas produzem transformações de sentido que a cultura escrita pode ter para os alunos. A maioria dos docentes não se faz perguntas como: “Por que ler?”; “Que sentido tem a leitura na sociedade atual?”; “O que é ensinar a ler e a escrever?”; “Por que a escola ensina a ler e a escrever?” E outras perguntas orientadas para que se entenda melhor o porquê e o para quê da leitura em um contexto histórico e social.

Nossa visão, então, é externa, que bem reconhece o difícil trabalho dos professores, não é condescendente, pelo contrário trata de rever posturas, lugares comuns, preconceitos arraigados, que funcionam como mecanismo de defesa a críticas e a exigências que a sociedade lhes fazem – sem que tenham muito claro o que se espera deles, professores – e quais são suas limitações no momento de cumprir com o que lhes é exigido.

A primeira pergunta que nos propomos se refere às motivações que os estudantes têm para aprender. “O que os move?”; “O que os convoca?”; “Eles consideram que ler e escrever pode ter algum sentido para suas vidas presentes e futuras?”.

As respostas nos conduzem, em primeiro lugar, ao tema das mediações. É absolutamente claro que quase a única motivação para eles é a nota. Por trás dessa exigência há pressões que provêm do sistema educacional (desempenho dos alunos em diferentes tipos de provas nacionais e internacionais e estímulos que outorgam os colégios, com base nos resultados), o que, por sua vez, está pressionado por toda a sociedade, interessada em resultados utilitaristas, imediatos e pragmáticos.

Parece que o único propósito que motiva toda a ação educativa se encerra na obtenção das notas. As crianças, especialmente a partir do Ensino Fundamental II, quando começam a perder alguns estímulos e a entender que o que se espera deles é uma qualificação, pedem nota; os pais também a exigem, pois partem do pressuposto de que se está “perdendo tempo”.

Considerar a nota como quase a única motivação relaciona-se aos momentos que escapam do pragmatismo e da exigência de avaliação: quando se propõe a leitura como uma prática lúdica e recreativa. Esse é um tema de importantes debates, que envolvem o significado e o sentido que a sociedade e, por fim, a escola dão à leitura. É possível, ainda, pensar a leitura como construção de sentido? A leitura permite um olhar mais crítico e menos superficial da realidade? A escola e a sociedade exercem diferentes papéis na formação de pessoas competentes para o trabalho e de cidadãos aptos e funcionais para a sociedade de consumo? E então, o livro e a leitura deixam de ter sentido na formação de cidadãos críticos e de seres humanos com capacidade para pensar e para escolher, com responsabilidade ética, frente aos demais? Ou definitivamente a escola foi cooptada pelos interesses particulares da sociedade de consumo como uma instituição ao serviço do que o mercado propõe como entretenimento de massa? E o livro e a leitura entram também para formar parte das indústrias culturais que respondem aos interesses particulares e que só têm fins lucrativos?

Não se pode negar o prazer que a leitura produz em uma pessoa que superou a dificuldade de tornar-se leitor, ou melhor, que supera diariamente o enfrentamento com um texto considerado complexo. Porém, o prazer como prerrogativa para atrair a leitura é um dos lugares-comuns mais cristalizados nas instituições em que a leitura e a escrita deveriam ser preocupação central: a escola e a biblioteca. E esta, ou é uma ordem demagógica que pretende destituir a leitura de toda dificuldade e oferecer a possibilidade de acessá-la sem esforço; ou, de fato, destitui-se, com isso, a leitura de sentido que se pode ter na busca pelo significado e se apresenta como uma mercadoria, um bem de consumo, um meio para a evasão, em que a intermediação da escola não faria falta.

O professor Luís Percival Leme Britto afirmava – há alguns anos, a partir de questões suscitadas por Habermas –, em uma conferência apresentada no Rio de Janeiro, que o legado conservador da contracultura dos anos 1960 foi o da subjetividade e do hedonismo, em suma, um idealismo reacionário, uma afirmação da subjetividade absoluta, da felicidade individual plena, que produz uma ilusão de liberdade. As principais formas de alienação se dão através das indústrias da informação e do entretenimento, entretenimento que é contraposto à arte e que propõe o esquecimento, de acordo com as palavras do professor Britto (notas tomadas na conferência apresentada no Simpósio do Salão do Livro Infantil do Rio de Janeiro, em 27 de maio de 2008).

O livro e a leitura foram também colonizados pela indústria do entretenimento e, em minha opinião, somente a escola poderia fazer algo por seu resgate. Dito de outra forma: é necessário que a escola não seja cúmplice dessa colonização e se converta em um espaço – talvez único – de resistência.

A pergunta que se deveria se fazer é: qual é o sentido que a leitura tem para a sociedade e por que é importante que dela se ocupem as instituições como escola e biblioteca?

Voltemos ao tema da nota. A avaliação quantitativa, como única motivação para aprender a ler e a escrever (diga-se de passagem, parece que esse é o único incentivo para todas as aprendizagens, exceto nos casos em que claramente se pode encontrar um sentido prático direto para o trabalho). Nem a escola nem a família oferecem aos estudantes pistas claras acerca da importância que pode ter para eles aprender a ler e a escrever e, muito menos, transformarem-se em pessoas que frequentem a leitura e pratiquem a escrita depois da escola. Na sociedade, a leitura e a escrita não são práticas cotidianas. Por que, então, os estudantes devem se submeter à semelhante esforço se não encontram na leitura utilidade prática para a vida futura? “Professor, para que isso serve?” é uma pergunta frequente em sala de aula. A única resposta que os professores têm a mão é o lúdico.

mediação de leitura/cor da letra
A COR DA LETRA

A NECESSIDADE 

“A ninguém interessa aprender coisas inúteis. Desde que nascemos, nossa necessidade de aprendizagem está ligada ao nosso instinto de sobrevivência. Queremos saber o que nos resulta necessário, e procuramos fora de nós o que existe como um esboço ou uma intuição dentro de nós mesmos”. (Antonio Muñoz Molina. La disciplina de la imaginación, p. 214. Grifo nosso.)

As palavras de Muñoz Molina nos conduzem a um tema de reflexão que considero importante: a necessidade como motivação para a aprendizagem. É possível que a escola produza – na contramão do que a sociedade propõe – uma ideia da necessidade que vá além do cotidiano e da sobrevivência imediata, e além das expectativas de consumo de bens supérfluos impostas pelos meios de comunicação de massa?

John Berger, autor inglês, em seu livro de ensaios El tamaño de una bolsa escreve as seguintes considerações:

“Até pouco tempo, a história, todas as memórias pessoais, todos os provérbios, as fábulas, as parábolas, apontavam o mesmo: a luta perene, atroz e ocasionalmente charmosa de viver com a Necessidade; a Necessidade que é o enigma da existência e que, após a Criação, não deixou de aguçar o espírito humano.
 
A Necessidade produz a tragédia e também a comédia [...].
 
Hoje, deixou de existir o espetáculo do sistema. E, por conseguinte, já não se comunica nenhuma experiência.” (Grifo nosso.)

Tratar da leitura, e especificamente da leitura de literatura, constitui-se numa necessidade, que se associa a outras necessidades do ser humano e que têm sido suplantadas, substituídas, pela sociedade de consumo – o que poderia ser, talvez, uma maneira de resgatar para os meninos, as meninas e os jovens, o sentido da leitura e da escrita e neles criar o desejo de aprender, ainda que a custa de esforços, que estariam dispostos a superar com gosto, se soubessem que o resultado é a satisfação de uma verdadeira necessidade.

Porém, antes de apresentar algumas considerações sobre as necessidades que, a meu ver, são transcendentes para o ser humano, gostaria de esclarecer um ponto, e para isso vou me valer de Henry Giroux, um expoente da pedagogia crítica, que afirma o seguinte em um artigo sobre ideologia e o processo de ensino:

“A interface entre a ideologia e a experiência individual pode posicionar-se dentro de três áreas específicas: a esfera do inconsciente e a estrutura das necessidades; o âmbito do senso comum e a esfera da consciência crítica”. (Henry Giroux. Pedagogía y política de la esperanza, p. 119.)

Creio necessário o esclarecimento anterior, pois não quero me posicionar no âmbito das necessidades inconscientes, determinadas por uma ideologia que se impõe sem resistências, nem no senso comum (que, contrariamente ao provérbio, é o mais comum dos sentidos), mas sim na esfera da consciência crítica. Quero dizer que me interessa apontar a leitura como necessidade, na medida em que contribua para produzir consciência crítica. Giroux, no artigo citado, escreve:

[...] “é essencial a inquietação fundamental de saber como fazer com que a escola signifique para que seja crítica, e como podemos fazê-la crítica para que seja emancipatória.” (p. 112.)

Então, quais poderiam ser as necessidades que, de uma maneira ou de outra, podem se associar com a leitura, e de maneira mais concreta, com a leitura de literatura?

O que se apresenta é uma especulação, que parte de reflexões pessoais acerca do sentido que a leitura pode ter para os seres humanos, no momento presente. Parto do pressuposto de que não existe um ser humano essencial, com necessidades que se sobreponham às suas especificidades históricas, étnicas, geográficas, econômicas, de classe, de gênero etc. Mas, também considero que, atualmente, quando predomina um discurso fragmentador sobre a diversidade, não estamos dispostos a reconhecer que há mais elementos que nos unem do que os que nos separam. De qualquer forma, apresento, somente a título de discussão, as reflexões que se sucedem e que pretendem resgatar o sentido do universal, sem dogmas, e comum aos seres humanos. Por outro lado, tampouco acredito que a leitura e a escrita constituam – somente elas – possibilidades de satisfação das necessidades que enumero a seguir.

1. PENSAR   

Em primeiro lugar, quero me referir à necessidade de pensar, que deveria ser resgatada pela escola, pois é justamente o pensamento uma das condições do ser humano na atualidade que se encontrada assediada de mil formas.

“Começo, talvez, a falar como os mais velhos – disse Yolanda Reyes em uma coluna do jornal El Tiempo, de Bogotá –, mas jamais tinha vivido uma época em que foi tão estranho pensar ou ensinar a pensar, nem havia encontrado tantos olhos vendados, tanto silêncio eloquente e tantas portas fechadas à argumentação.” (Yolanda Reyes. “Prohibido hacer preguntas”. El Tiempo. Bogotá, 15 de junho de 2009.)

Parece absurdo dizer que pensar constitua uma necessidade que se promove e ensine. Porém, não é exagero falar que o pensamento crítico, reflexivo esteja em decadência. Os meios de comunicação de massa impõem um pensamento hegemônico, uma maneira única de pensar e desejar. O italiano Giovanni Sartori, quando trata do retrocesso da civilização e do homem, no que se refere à capacidade de pensar, diz:

[...] “o regresso da incapacidade de pensar (o pós-pensamento) ao pensamento é todo morro acima. E esse regresso não terá lugar se não soubermos defender sobremaneira a leitura, o livro, em uma palavra: a cultura escrita.” (Giovanni Sartori. Homo ludens, p. 149.)

Por um lado, quando a escola pretende formar cidadãos, está mais empenhada em alcançar consensos acerca do que tem valor para a sociedade e para os indivíduos que em criar condições que permitam a formação de um pensamento crítico que conduza a escolhas próprias que não excluam as responsabilidades com os demais. E, por outro, a tecnologia e o pensamento científico positivista oferecem à escola muitas seguranças que se propõem isentas de esforço, de dificuldade, conduzindo ao regresso ao pensamento.
2. APRENDER  

“Não há desejo mais natural que o desejo de conhecer”. Assim inicia o ensaio Da experiência, de Michel de Montaigne. Conhecer, aprender, como algo diferente de acumular informação, entender, compreender, aprender como possibilidade de apropriação do mundo, como meio para se sentir no mundo. A leitura e a escrita podem, de alguma maneira, contribuir para a satisfação dessa necessidade, que se manifesta ao longo da vida e foi substituída, na pós-modernidade, e nas supostas “sociedades da informação e do conhecimento”, pela acumulação de informação, que oferece a sensação de estar inteirado de conhecer, de estar em dia, ou pelo modelo educacional atual, que se trate do eufemismo do life-long learning, pois propõe, para toda a vida, nada mais que um conhecimento que se perde e que impõe uma visão deste, associada à tecnologia e às competências para o trabalho.

3. BELEZA  

“No filme Beleza americana, o jovem Rick Fitts, um dos protagonistas, manifesta sua necessidade de captar, com sua câmera, a beleza que o mundo oferece, encontrando-a em cenas insólitas ou violentas: a dança de uma sacola de plástico com o vento, uma pomba morta. Acumular beleza para confrontar o mundo parece ser uma busca constante entre os adolescentes. O problema é que eles não sabem onde procurá-la e a beleza que a sociedade lhes oferece só os conduz à depressão e, na melhor das hipóteses, à perda de todo interesse” (Silvia Castrillón. “A leitura dos clássicos”. Por que ler e escrever?). É possível que a literatura nos ajude a viver: “viver a vida como obra de arte, prestando atenção ao que nos acontece”, como propõe Fernando Bárcena.
4. CONSTRUÇÃO DE SI MESMO E DA SUBJETIVIDADE  

O ser humano necessita de narrações mediante as quais possa construir sua biografia. A subjetividade se expressa e se configura por meio de relatos e testemunhos. Inúmeros autores se manifestam em relação a isso. A ficção que alimenta a infância e a adolescência na sociedade contemporânea, através, especialmente, da televisão, é uma ficção isenta de complexidade, maniqueísta, estereotipada e não dá conta da diversidade, nem pode ser sustento de uma subjetividade com um senso ético, social e político e de responsabilidade do Outro.

Peter McLaren propõe que:

[...] “é necessário compreender a necessidade humana de dar vida a símbolos, linguagem e gestos. A voz dos estudantes é um desejo nascido da biografia pessoal e do sedimento da história; é a necessidade de construir-se e se afirmar dentro de uma linguagem capaz de reconstruir a vida privada e revesti-la de sentido, de valor e confirmar a própria presença no mundo.” (Peter McLaren. Pedagogia, identidad y poder, p. 23.)

A leitura e a escrita, e de uma maneira muito especial aquelas de literatura, não só oferecem alimento para a construção da subjetividade e dão voz para expressá-la, como também permitem entender que esta construção não se dá de maneira ilhada, sem a responsável acolhida do Outro.
5. ATUAR  

A filósofa alemã Hannah Arendt estabelece uma diferença entre o cultivo, o trabalho e a ação, sendo o cultivo próprio dos processos biológicos para a subsistência como indivíduos e espécie; o trabalho, próprio do ser humano para criar objetos de uso e satisfação pessoal, o que possibilita condições materiais que vão para além da sobrevivência imediata: a produção ou aquisição de utensílios, ferramentas, artefatos, mercadorias etc, que beneficiam o homem, ou lhe dão a ilusão de melhorar sua existência; a ação como própria de um ser humano político, ético e com vistas a transformar sua realidade e que, segundo Joan-Carles Mèlich “se revela através do discurso e da palavra”. A leitura e a escrita permitem uma apropriação e uma tomada da palavra, visando a “uma leitura crítica do mundo”, permitindo a construção de um lugar mais digno para todos e a expressão de desejos e aspirações.

De acordo com McLaren: “É preciso que tanto os docentes como os alunos estejam em condições de se posicionar como ativos agentes sociais, culturais, históricos” (McLaren. Pedagogía crítica, resistência cultural y la producción del deseo.)

Paulo Freire propõe: “O mundo não é. O mundo está sendo. Como subjetividade curiosa, inteligente, interferidora na objetividade com que dialeticamente me relaciono, meu papel no mundo não é só o de quem constata o que ocorre mas também o de quem intervém como sujeito de ocorrências.” (Paulo Freire. Pedagogia da autonomia, p. 85) e para isso é necessário “uma séria e rigorosa leitura de textos.” (Paulo Freire. Política e educação, p. 55.)

As considerações anteriores, obviamente, são apenas um esboço das necessidades com as quais se podem associar a leitura. Existem outras.

“A lista é grande. Ler responde a uma necessidade [...] de reparação, de qualificação, de auto-afirmação, de confirmação, de glorificação, de projeção do futuro e do passado, de sublimação, de exploração, de identificação, de educação, de “desidentificação”, de despersonalização, de criação ou, simplesmente, antes de tudo, de jogo, ou seja, de entrada no domínio do mundo em que se vive.” (Marc-Alai Ouaknin. Bibliothèrapie.)

Por fim, não posso evitar a tentação de citar um trecho de Simone Weil sobre “a necessidade da alma”:

“O primeiro estudo a se realizar é o das necessidades, que são a vida da alma, como as necessidades de alimento, de sono e de calor são a vida do corpo. Há que enumerá-las e defini-las.
Não se deve confundir nunca as necessidades da alma com os desejos, caprichos, as fantasias e os vícios.” (Simone Weil. Echar raíces, p. 27.)

O PAPEL DA ESCOLA

As reflexões anteriores levam ao conhecimento dos debates certo desestímulo entre os professores e professoras, pois eles não vislumbram de que maneira poderão oferecer aos alunos as possibilidades para a descoberta das necessidades. Porém, ao fazer uma análise dos desejos, das angústias dos adolescentes, e a maneira como expressam sua indignidade com o mundo, começamos a nos dar conta de que não somente é possível, como também necessário – eu diria urgente – discutir questões relativas à leitura e à escrita, pois os jovens não só são receptivos às propostas que lhes indiquem um caminho emancipador mais humano, como também reclamam ações nesse sentido, mediante diferentes tipos de demandas que, geralmente, não compreendemos.

A reflexão que segue se orienta pela maneira como a escola pode criar as condições para a descoberta da necessidade de apropriação por parte dos alunos, mesmo que seja por alguns deles.

CRIAR AS "CONDIÇÕES DA POSSIBILIDADE"

O PROFESSOR  

A condição de um professor leitor, que se mostre aos seus alunos como tal. Todos os professores leem e escrevem, mas geralmente o fazem em função de seu trabalho como professores: apresentam trabalhos, revisam textos, fazem ditados, anotam questões dos cursos de que participam, em algumas ocasiões escrevem acerca de sua experiência etc. Mas não são essas práticas que poderiam motivar os estudantes a se interessar pela leitura e pela escrita, pois a maioria não tem como projeto de vida o magistério. São outras práticas que oferecem aos alunos ocasião de descobrir a leitura e a escrita como necessidades. Por outro lado, fora da escola, são poucas as ocasiões em que os alunos se apresentam para pessoas como usuários da cultura escrita.

Porém, o que queremos propor não é que o professor seja um exemplo de leitor a ser seguido, posto que estaríamos contradizendo nossa concepção de leitor. Um leitor não segue modelos, não copia. A leitura parte da dúvida, da pergunta, da ignorância. A atitude do leitor não é de “quem tudo sabe”, e, portanto, se encontra satisfeito e complacente com o que já sabe e só lê para retificar o que já conhece. A atitude do leitor é contrária a essa segurança. É por isso que nos parece que o professor ao invés de se apresentar como exemplo, que, de alguma maneira é impositiva, deve oferecer testemunho de sua prática leitora. As práticas de leitura e de escrita do professor não devem somente demonstrar seu interesse por essas atividades, também devem dar conta de sua condição de leitor, como alguém que tem dúvidas, que não sabe tudo, que pode mudar de opinião, que se deixa transformar.

Ou, como disse Michèle Petit, quando trata de seus professores: “[...] tal docente singular tem a habilidade de ter introduzido [a seus alunos] uma relação com os livros diferentes do dever cultural ou da obrigação austera, de ter suscitado neles encantamento, mas também a necessidade de pensar, quando elaboram, frente aos alunos, um pensamento vivo, em movimento, em vez de aplicar um esquema.” (Grifo nosso).

Isso não quer dizer que o papel do professor seja o de retroceder no momento de oferecer opiniões, desenvolver propostas, discutir sua opinião, entrar em debate. Não se trata de ser irredutível, de não intervir, algo que está comum, ante o pretexto de respeitar a suposta autonomia dos estudantes e seu direito ao desenvolvimento da livre personalidade, o que, em última instância se configura como abandono. “Em nome do respeito que devo aos alunos não tenho por que me omitir”, disse Paulo Freire. (Paulo Freire. Pedagogia da autonomia, p. 66.)
OS BONS LIVROS  

Se a escola quer que a leitura responda às necessidades de que tratamos acima (beleza, pensamento, ficção etc.) é necessário que isso aconteça mediante os bons livros. Melhor dito: só os bons livros permitem essa resposta. Livros que mobilizem o pensamento, que permitam verdadeiras experiências estéticas, que ofereçam possibilidades de constituição de uma subjetividade combinada com a complexidade que isso implica e, por sua vez, deem lugar ao reconhecimento do “Outro”; há livros que se leem uma vez e se tornam imprescindíveis, são inesquecíveis, deixam marcas. Porém, a escola é, às vezes, condescendente com o argumento de que se parte do interesse da criança pelo livro, sem fazer uma reflexão acerca da maneira pela qual esse interesse foi criado – ou, melhor, imposto – com fins que não são, precisamente, o de estimular a experiência transformadora e o pensamento crítico. Por trás da proposta de que crianças e jovens se tornem leitores há intenções comerciais que só querem formar consumidores acríticos de livros. O mercado oferece muitos livros que reproduzem o que a televisão propõe enquanto esquemas narrativos, personagens estereotipados, linguagem desprovida de riqueza literária, e livros de autoajuda, que pretende suplantar o leitor do exercício de pensar.

A diversidade de práticas de leitura. Uma terceira condição de possibilidade seria a de multiplicar e diversificar as práticas de leitura, desde que estas se realizem com um sentido associado à natureza da leitura e que permitam o descobrimento das necessidades da leitura e da escrita, ligadas às necessidades reais: em outras palavras: que sejam significativas. Esse debate se enriquece com o que propõe Delia Lerner em seu livro Leer y escribir en la escuela, lo real, lo posible y lo necesario.
FAVORECER UMA VERDADEIRA EXPERIÊNCIA DE LEITURA  

Frequentemente os professores se perguntam: o que posso fazer com esse livro? Ou afirmam, quando da leitura de um livro para crianças ou jovens: esse livro é bom “para trabalhar” determinado tema ou valor. Para o professor, o livro não é válido se não se nele uma relação direta com o trabalho prático em sala de aula. Não se concebe a leitura se ela não se materializa em algo concreto, que se pode ver ou medir.
A escola controla a experiência leitora de múltiplas maneiras: com ativismo, com excesso de informação e, especialmente, com a nota como meta única de qualquer prática de leitura e escrita.

O SILÊNCIO COMO CONDIÇÃO PARA A EXPERIÊNCIA   

George Jan em seu livro Los senderos de la imaginación infantil confessa que gostaria de escrever uma pedagogia do silêncio, mas não sobre o silêncio posterior à ordem. A escola deveria oferecer o silêncio como possibilidade de reflexão, pensamento, diálogo interior, sem os quais não é possível uma verdadeira experiência; mas isso não é feito por duas razões: pela impossibilidade de avaliar esses momentos e porque se acredita responder aos interesses dos alunos quando lhes oferece música e ruído estridente.

Sugiro a leitura de Jorge Larrosa – especialmente seu livro La experiência de la lectura – e de Joan-Carles Mèlich – Filosofia de la infinitud – para aprofundar o tema da experiência.

O que foi dito anteriormente não é mais que um ponto de partida para algumas reflexões que a escola está em vias de empreender para romper com os modelos totalizadores e desumanos, ou como disse Emilia Ferreiro: “modelos hegemônicos de comportamentos (individuais e sociais) por parte dos meios de comunicação de massa e de modelos de organização social de um consumismo voraz de objetos, que se tornam objetos de desejo: automóveis, eletrônicos etc, tudo, absolutamente TUDO, pode se transformar em mercadoria, inclusive AS PESSOAS” (Anotações da palestra de Emilia Ferreiro, “La alfabetización en perspectiva”, apresentada no XXII Congresso Mundial de Leitura, 31 de julho de 2008).

Estamos, por outro lado, conscientes de que a transformação de representações, imaginários e práticas de leitura e escrita como necessidades para todos os seres humanos não se dão em curto prazo, especialmente se pensarmos que já aconteceram grandes modificações no sentido que a leitura e a escrita têm para a sociedade, graças às propostas – por que não dizer às imposições – totalizadoras da sociedade de consumo que se apresentam mediante seu principal instrumento de massificação: os meios de comunicação.

“Dá a sensação de que nosso tempo [...]” – diz a escritora argentina Graciela Montes – “perdeu sua confiança na leitura, não está muito seguro de que para que [a leitura] serve e, envergonhado por haver deixado cair algo tradicionalmente tão valioso, em espaços curtos de tempo, compõe-se elegias sobre ela e a disfarça, e a faz pular como um macaquinho” (Graciela Montes. El espacio social de la lectura.)

Como diria, também, o sociólogo espanhol Enrique Gil Calvo, “a leitura perde o monopólio da construção social da realidade e tampouco se constitui como critério de seleção e de ilustração das elites.” (Enrique Gil Calvo. El destino lector.)

Então, tem sentido ir na contramão do que propõe a sociedade atual e investir esforços e recursos em práticas que ela já não valoriza e que perderam significado, como maneira de entender o mundo e entendermos a nós mesmos?

Creio que essa é uma falsa pergunta. O que se deveria perguntar, a meu ver, é se ainda tem sentido insistir na necessidade de entender, de compreender, de pensar, de participar, na necessidade de atuar – compreendendo – para transformar. Se ainda é possível imaginar um futuro diferente, mais igualitário, menos injusto com a maioria. Se é possível despertar nas crianças a ideia de que ainda podem ter esperança em seu porvir, mas não em um porvir que privilegie o sucesso individual, baseado em algumas competências relacionadas ao trabalho. Se ainda é possível produzir nelas confiança em si mesmas e nos demais, que lhes permita imaginar outras maneiras mais solidárias, menos violentas e mais justas de viver e conviver.

Diante do que foi exposto, não quero dizer que a leitura e a escrita, como práticas sociais, são as únicas vias de construção de sentido e de formas de ação e de transformação, nem que de sua apropriação derivaria uma mudança para a vida da maioria das pessoas. Só queria apontar que a democratização da cultura escrita, e do sentido que ela tem na transformação social, contribui para produzir condições ao pensamento crítico, para a construção de sujeitos com maiores possibilidades de inserção em suas realidades e, especialmente, eticamente responsáveis.


Referências Bibliográficas

Antonio Muñoz Molina. La disciplina de la imaginación. Bogotá: Asolectura, 2008.
Enrique Gil Calvo. “El destino lector”. Em: La educación lectora. Madrid: Fundación Germán Sánchez Ruipérez, 2001.
George Jean. Los senderos de la imaginación infantil. México: Fondo de Cultura Económica, 1990.
Giovanni Sartori. Homo ludens. Buenos Aires: Aguilar, Altea, Taurus, Alfaguara, 1998.
Graciela Montes. “El espacio social de la lectura”. Em: La educación lectora. Madrid: Fundación Germán Sánchez Ruipérez, 2001.
Hannah Arendt. “Labor, trabajo y acción: una conferencia”. Em: De la historia a la acción. Buenos Aires: Paidós, 2005.
Henry Giroux. Pedagogía y política de la esperanza. Buenos Aires: Amorrortu, 2003.
Joan-Carles Mèlich. Filosofía de la finitud. Barcelona: Herder, 2002.
John Berger. “Unos pasos hacia una pequeña teoría de lo visible”. Em: El tamaño de una bolsa. Buenos Aires: Aguilar, Altea, Taurus, Alfaguara, 2004.
Jorge Larrosa. La experiencia de la lectura. México: Fondo de Cultura Económica, 2003.
Marc-Alai Ouaknin. Bibliothérapie. Paris: Seuil, 1994.
Paulo Freire. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 2011.
Paulo Freire. Política e educação. São Paulo: Cortez, 2003.
Peter McLaren. Pedagogía crítica, resistencia cultural y la producción del deseo. Buenos Aires: Aique, 1994.
Peter McLaren: Pedagogía, identidad y poder. Rosario, Argentina: Homo Sapiens, 2003.
Silvia Castrillón. “La lectura de los clásicos”. Em: ¿Por qué leer y escribir? Bogotá: Secretaría de Cultura Recreación y Deportes, 2007.
Simone Weil. Echar raíces. Madrid: Trotta, 1996.

TRADUÇÃO: THAIS ALBIERI

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