terça-feira, 31 de maio de 2011

Acesso à leitura ganha espaço

Crescem iniciativas que oferecem livros e uso gratuito de bibliotecas

MARLENE JAGGI

Detalhe da Borrachalioteca
Foto: João Gustavo Soares

O mineiro Marcos Túlio Damasceno, de 32 anos, sempre foi apaixonado por livros e um observador dos hábitos das pessoas. Licenciado em letras, não deixava de notar o interesse dos amigos e clientes da borracharia do pai pelos jornais e revistas que ficavam entre os pneus, à disposição de quem os quisesse ler. Solícito, decidiu ajeitar uma estante com livros no estabelecimento. A iniciativa agradou tanto aos moradores de Sabará, município a 25 quilômetros de Belo Horizonte, que o professor se jogou de corpo e alma no projeto. Resultado: dos primeiros 70 livros de 2002 passou a um acervo de 20 mil exemplares nas quatro unidades atuais da Borrachalioteca: a sede, que ainda funciona dentro da borracharia; a Sala Son Salvador, no bairro Cabral; o espaço Libertação pela Leitura, aberto dentro do presídio de Sabará, e a Casa das Artes (que abriga uma biblioteca infanto-juvenil e uma Cordelteca). “Acabamos nos tornando referência para os amantes da leitura na cidade”, conta Damasceno.

A Borrachalioteca é um dos milhares de projetos que avançam, Brasil afora, com o objetivo de oferecer à sociedade acesso gratuito à leitura. São iniciativas de todos os tipos e portes, criadas para todos os públicos, pelas mais diversas instituições – de representantes da sociedade civil às três esferas do governo – e que trazem à tona uma realidade pouco percebida: o brasileiro, de fato, lê muito pouco, mas crescem em número e diversidade as alternativas de acesso à leitura no país.

Essa onda pró-leitura inclui programas grandiosos, como o lançamento, em 2009, do Mais Livro e Mais Leitura nos Estados e Municípios, iniciativa do Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL), dos ministérios da Cultura (MinC) e da Educação (MEC) e do Instituto Pró-Livro, que visa incentivar essas instâncias de governo a criar seus próprios planos de promoção da leitura. Há também projetos pontuais de grande porte, como a reabertura em janeiro da Biblioteca Mário de Andrade na capital paulista, e a inauguração, há um ano, da Biblioteca de São Paulo, assim como iniciativas singelas semelhantes à Borrachalioteca ou ao Jegue-Livro, criado em 2005 em Alto Alegre do Pindaré (MA) e que lança mão dos recursos disponíveis para levar livros a comunidades que, de outra forma, não teriam acesso a eles: um jegue, que sai da Casa do Professor carregando dois jacás coloridos cheios de livros para levar literatura a cinco povoados da região.

“É incrível o poder multiplicador que projetos como esses têm sobre a sociedade”, diz Lourdes Atié, coordenadora pedagógica do Prêmio Viva Leitura. Criado em 2006 por iniciativa do MEC, do MinC e da Organização dos Estados Ibero-Americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura (OEI), o concurso recebeu até agora 2 mil inscrições no Brasil inteiro. O projeto do Jegue-Livro ganhou o prêmio em 2006. A Borrachalioteca, em 2007. “No início, foi uma surpresa encontrar um Brasil feito de pessoas não eruditas, mas comprometidas em fazer alguma coisa pela cultura. Hoje percebemos que as experiências, vencedoras ou não do prêmio, ganham visibilidade e inspiram iniciativas semelhantes”, diz ela.

Assim como a borracharia, estabelecimentos como açougues e quitandas reservam um espaço para abrigar livros e emprestá-los aos moradores vizinhos. Há também quem desenvolva propostas para seu próprio pessoal. Foi o que fez Kátia Ricomini, de 29 anos, dona da paulistana Translig, empresa de motoboys. Para incentivar o hábito da leitura entre os funcionários, que não tinham o que fazer enquanto aguardavam novas entregas, ela criou, em 2006, o projeto Translivroteca. Três anos depois implantou também o Pegadas da Leitura, que estimula a troca gratuita de livros. Funciona assim: as obras levam na contracapa um resumo do projeto, onde se pede às pessoas que, depois de ler, passem o exemplar adiante, formando uma corrente de leitura. “A pessoa lê o livro, envia um e-mail para a Translig, conta o que achou e ‘liberta’ a obra em algum local. Pode ser no ponto de ônibus, na cafeteria, no metrô – em qualquer lugar onde ele encontre um novo leitor”, diz Kátia.

Para todos

A movimentação pela democratização do acesso à leitura lança mão de todos os meios de transporte. O que vale é deslocar materiais de leitura para pontos estratégicos, seja por meio de um jegue, barco, ônibus, caminhão ou metrô. O projeto Embarque na Leitura, por exemplo, gerenciado pelo Instituto Brasil Leitor e apoiado pelo MinC, colocou bibliotecas em seis estações do Metrô de São Paulo que emprestam livros de graça a quem utiliza esse meio de transporte. Desde 2004, 45 mil pessoas já se cadastraram e fizeram quase 500 mil empréstimos. No total, as seis bibliotecas reúnem quase 24 mil títulos.

O meio escolhido pela Secretaria Municipal da Cultura de São Paulo foi o ônibus. São quatro ônibus-biblioteca que percorrem 20 roteiros fixos para levar leitura à população da periferia carente de equipamentos culturais, na capital paulista. No lugar de ônibus, o Serviço Social do Comércio (Sesc) usa caminhões-baú como base para o projeto BiblioSesc. O primeiro foi implantado em Pernambuco, em 2005. A regional de São Paulo encampou o projeto em 2009 e hoje utiliza dois caminhões – um que vai a cinco comunidades em Interlagos e outro que vai a seis, em Itaquera. “Ainda este ano teremos outros dois”, afirma Francis Manzoni, assistente de leitura da gerência cultural do Sesc-SP.

O projeto atualmente está em todo o Brasil. No total são 27 veículos espalhados por vários estados onde o Sesc tem unidades regionais. Até o final do ano serão 52, diz Lisyane Wanderley dos Santos, assessora técnica de biblioteca. Em 2010, o BiblioSesc recebeu 26,6 mil inscrições de pessoas, em 35 municípios brasileiros.

Um dos critérios do projeto é atender comunidades carentes de equipamentos culturais. Cada caminhão tem estantes com cerca de 3 mil publicações, escada para acesso à carroceria, ar-condicionado (que funciona mediante parceria com instituições locais que cedem energia elétrica) e bibliotecário para dar suporte às atividades. O interessado entra e escolhe o livro, faz a carteirinha na hora e leva para ler em casa, devolvendo na volta do caminhão, 15 dias depois.

Avanço

De acordo com José Castilho Marques Neto, ex-secretário executivo do PNLL e diretor presidente da Fundação Editora da Unesp, o movimento para formar leitores cresceu muito nos últimos anos, principalmente a partir de 2003, quando passou a contar com a decisão política dos chefes de governo ibero-americanos de colocar a leitura como um objetivo a ser alcançado nos países da região. “Estamos num momento de inflexão importante e a hora é de avançar ainda mais nas conquistas, em todos os planos nacionais de leitura que acontecem em 19 países ibero-americanos”, diz ele.

Em sua opinião, no Brasil o projeto Mais Livro e Mais Leitura nos Estados e Municípios trará a capilaridade necessária e fará com que as cidades e estados se apoderem do PNLL, mas ele lembra que o governo federal precisa adotar outras medidas para constituir um país de leitores: institucionalizar o PNLL por lei, para garantir sua perenidade, criar o Instituto do Livro, Leitura e Literatura, para orientar e coordenar a política pública de incentivo à leitura no país, e formar um fundo específico para assegurar recursos continuados à área.

Até agora, os números oficiais preocupam. A última pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil”, de 2008, apontou o índice de 1,3 livro lido por ano por pessoa (descontadas as obras escolares, que, se incluídas, elevariam o resultado para 4,7). “Como o levantamento já tem quatro anos, estamos com a expectativa de que, com os milhares de ações pró-leitura mais recentes, tanto dos governos quanto da sociedade, esse índice tenha aumentado”, diz Castilho.

Apesar dos esforços, no entanto, nem sempre o resultado é o esperado. A intenção do governo Lula de garantir o funcionamento de pelo menos uma biblioteca pública em cada cidade brasileira até 2010 não se concretizou. Dos 1.126 municípios que receberam kits com estantes e livros, somente 215 comunicaram a abertura de bibliotecas ao Ministério da Cultura. Por outro lado, as metas governamentais já não parecem tão distantes. Segundo o 1º Censo Nacional das Bibliotecas Públicas Municipais, feito pela Fundação Getúlio Vargas a pedido do Ministério da Cultura e divulgado em abril de 2010, 79% das cidades brasileiras possuíam ao menos uma biblioteca em funcionamento. O levantamento mapeou os 5.565 municípios do país e identificou 4.763 bibliotecas em 4.413 deles. Em 13% das localidades havia unidades em fase de implantação ou de reabertura e em 8% estavam fechadas, extintas ou nunca existiram.

“O programa Mais Cultura fomentou centenas de projetos para construção, reforma e modernização”, diz Castilho, segundo o qual tão importante quanto o avanço quantitativo é a mudança de conceito de biblioteca – que migrou de espaço sisudo e vazio para áreas abertas a um público maior, com recursos multimídia, alcançando leitores de todas as idades e necessidades.

Renovação

São Paulo é um bom exemplo dessa mudança. A maior parte das 54 bibliotecas públicas da cidade foi revitalizada e quase todo o acervo de 2,2 milhões de exemplares já está no catálogo online. “Durante muito tempo as bibliotecas foram espaços escolares e até por isso havia uma separação entre as destinadas a adultos e as infanto-juvenis. Isso mudou. Além da integração do acervo, os espaços foram reformados, ganharam novos móveis, como estantes, tatames, pufes e mesinhas, e reforço na programação de eventos culturais, o que permite que uma família inteira encontre leitura e entretenimento”, avalia Maria Zenita Monteiro, coordenadora do Sistema Municipal de Bibliotecas de São Paulo.

Novinha, a Biblioteca Álvaro Guerra, do bairro de Pinheiros, tem tudo isso e até um jardim de leitura em que crianças, adultos e idosos da região podem ler ou emprestar qualquer um dos 25 mil exemplares do acervo, conta a coordenadora da unidade, Jamile Salibe Ribeiro de Faria. Essa renovação pode ser observada também na Biblioteca Mário Schenberg, localizada na Lapa. Fundada há 57 anos, ela era, até há pouco tempo, um depósito de estantes, lembra a coordenadora, Patrícia Marçal Frias. Inserida no projeto Descobrindo os Encantos da Biblioteca Pública, da Secretaria Municipal de Cultura, virou uma das oito unidades temáticas da cidade – projeto que acrescenta às características tradicionais uma área dedicada a livros e atividades de determinados temas. O da Mário Schenberg é ciência. Lá há livros específicos e ocorrem exposições e até shows, como os do grupo Mad Science.

Na Alceu Amoroso Lima, também situada em Pinheiros, a especialização é poesia. São 3 mil títulos do gênero. Para quem gosta de tradições populares, o endereço é a Biblioteca Belmonte, localizada no bairro de Santo Amaro, com seus 500 livretos de cordel. São também temáticas as bibliotecas Cassiano Ricardo (música), Roberto Santos (cinema), Viriato Corrêa (literatura fantástica), Hans Christian Andersen (contos de fadas) e Raul Bopp (meio ambiente). Até 2012, a cidade ganhará mais duas – uma delas, a de cultura negra, será aberta ainda neste ano, no bairro do Jabaquara.

Além das bibliotecas públicas e temáticas, a cidade tem oito Bosques da Leitura, que funcionam aos domingos em vários parques, como Anhanguera, Ibirapuera, do Carmo e da Luz, e 12 Pontos de Leitura – espaços com no mínimo 60 metros quadrados e acervo de 1,5 mil exemplares, instalados na periferia da cidade, em locais como Jardim Ângela e São Miguel Paulista. Em 2010, o Sistema Municipal de Bibliotecas de São Paulo registrou a frequência de 1,2 milhão de pessoas e emprestou cerca de 900 mil livros – não estão computados nesses totais os dados das bibliotecas Mário de Andrade e do Centro Cultural São Paulo.

Fechada desde 2007 para reforma, a Biblioteca Mário de Andrade foi reaberta em janeiro, após um processo de restauração e modernização do prédio e desinfestação do acervo de 200 mil livros, entre os quais uma coleção com 50 mil obras raras e especiais, 27 mil volumes de arte e 42 mil livros circulantes. Com 3,3 milhões de itens, ela abriga o segundo maior acervo documental e bibliográfico brasileiro (o primeiro é o da Biblioteca Nacional, no Rio de janeiro).

Além disso, o paulistano pode se preparar para mais novidades: a reforma da Biblioteca Infanto-Juvenil Monteiro Lobato; a inauguração neste ano do novo prédio da Biblioteca Sérgio Buarque de Holanda, em Itaquera, e a abertura do Centro de Formação Cultural de Cidade Tiradentes, que está em construção e prevê uma biblioteca de aproximadamente 500 metros quadrados.

Inclusão

Nesse processo de modernização e mudança de conceito das bibliotecas, os públicos com necessidades especiais são sempre lembrados. O melhor exemplo dessa preocupação está na Biblioteca de São Paulo, inaugurada em fevereiro de 2010 exatamente onde funcionava o Carandiru, o maior presídio da América Latina e um dos mais violentos que o país já teve. Ali, além de um acervo em braile, o usuário encontra cadeiras e estantes adequadas a faixas etárias e mesas reguláveis de fácil adaptação para cadeiras de rodas. A unidade dispõe ainda de mil títulos de audiobooks e até de um scanner que transforma páginas de livros convencionais em áudio ou placas de braile, o que permite acesso dos deficientes visuais à literatura geral. Para quem não pode movimentar as mãos, a biblioteca oferece folheadores automáticos de páginas. “A Biblioteca de São Paulo é um marco, um lugar mágico em que foram investidos R$ 12,5 milhões”, informa Adriana Ferrari, idealizadora do projeto e coordenadora da Unidade de Bibliotecas e Leitura da Secretaria da Cultura do estado de São Paulo. De fato, em vez de celas e violência, o que se vê ali é um parque arborizado e um prédio moderno, alegre, que recebe 30 mil pessoas por mês.

Outro diferencial desse estabelecimento, alinhado com o movimento atual que ocorre no país, é a determinação em fazer com que a leitura vire sinônimo de prazer e a biblioteca, um espaço de cultura e entretenimento. Assim, não é de estranhar que a Biblioteca de São Paulo tenha 94 computadores para o público acessar a web gratuitamente durante duas horas e meia por dia. Inspirada no modelo da Biblioteca de Santiago, no Chile, tem espaços organizados por cores que indicam as faixas etárias – os destinados às crianças têm mesas, tatames, estantes baixas. Resultado: virou um grande centro de convivência onde se pode ler o jornal do dia, uma revista estrangeira, fazer empréstimo de títulos de literatura, observar o ranking dos mais procurados no painel eletrônico, assistir a um show, jogar xadrez e até mesmo ter acesso a literatura erótica. No seu primeiro ano de funcionamento, recebeu 317 mil pessoas e emprestou mais de 180 mil livros, informa a diretora, Magda Maciel Montenegro.

Com 30 mil itens, entre livros, DVDs, CDs, revistas, quadrinhos e jornais, a biblioteca tem até um terminal de autoatendimento, que permite ao usuário cadastrado liberar o empréstimo sozinho. Os mais procurados, contudo, podem desapontar os intelectuais: são geralmente best-sellers. “Todos temos um tempo próprio para amadurecer nossas leituras”, diz Adriana. “O que não se pode é não dar acesso aos livros.” É por isso, segundo ela, que o governo do estado prepara uma nova unidade nos moldes da Biblioteca de São Paulo, no Parque do Belém.

Na escola

Segundo Lourdes Atié, do Prêmio Viva Leitura, apesar de todo o esforço que vem sendo feito, o estímulo à leitura ainda tem um longo caminho a percorrer, principalmente nos estabelecimentos de ensino. “Não basta ter acervo. Falta intencionalidade; pensar no que se pode fazer para que a escola não vire um depósito de livros”, diz ela. Daniela da Costa Neves, de 28 anos, já tem o seu jeito. Professora orientadora da Sala de Leitura da Escola Municipal de Ensino Fundamental Professora Maria Berenice dos Santos, que fica no Jardim das Flores, na região de Guarapiranga, criou o Projeto Semana Literária, que, pelo terceiro ano consecutivo, coloca 470 crianças de 6 a 10 anos em contato com ilustradores, escritores e contadores de histórias, para estimular nelas o prazer da leitura.

As 45 bibliotecas dos Centros Educacionais Unificados (CEUs) são outro exemplo de que a leitura vem ganhando espaço nas escolas, embora o censo escolar divulgado no ano passado pelo Ministério da Educação mostre que ainda há muito a fazer. Segundo o levantamento, entre as escolas do primeiro ao quinto ano do ensino fundamental apenas 30,4% têm biblioteca. Do sexto ao nono ano, o índice sobe para 60% e, no ensino médio, para 73,2%.

Dentro ou fora das escolas, não é fácil elevar os índices de leitura no Brasil. “Não podemos nos esquecer de que o problema vem de longe, de nosso tipo de colonização, da exclusão histórica e contínua da maioria da população em relação aos bens culturais e, entre esses, aos livros em particular”, observa Castilho. Em sua opinião, a leitura ainda é considerada um “biscoito fino” pelas nossas elites. A saída? Elaborar uma política pública de longo prazo que assegure esse direito a todos os brasileiros.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

A influência das práticas de leitura na formação de leitores

Matéria publicada em Publicada: 25/08/2008

Por mais que se tente explicar por que o brasileiro lê muito pouco, as justificativas não são simples. Conseqüentemente, qualquer ação que possa incentivar crianças, jovens e adultos a ler mais requer uma análise profunda do atual cenário educacional. Mas uma coisa parece estar clara: se não existe motivação para desfrutar o prazer da leitura, então é preciso transformar a relação que as crianças têm com o livro para incentivar a formação de leitores. "A leitura deve ser fonte de conhecimento, mas também é fonte de emoção, de prazer e de lazer", diz Maria Alice Armelin, coordenadora do Entre na Roda do Cenpec e co-autora dos materiais didáticos do projeto, cujo foco é a formação de orientadores de leitura.

Diante desse contexto, um dos desafios é formar, de fato, pessoas que praticam a leitura e não apenas sujeitos que sabem decifrar o código da escrita. Ou seja, essa relação estritamente escolar e obrigatória que boa parte das crianças têm com a leitura precisa ser complementada com a sua prática cultural e social.

Dois atores são fundamentais para despertar nas crianças o prazer pela leitura: a família e a escola. A mãe, como maior influência na formação de leitores, deve cativar os filhos para desenvolver esse gosto. "É mais fácil que uma criança se torne leitora se ela crescer numa casa em que as pessoas manuseiam livros e lêem. Além disso, ao ler ou contar histórias, os pais estreitam vínculos com os filhos", explica Maria Alice. Por outro lado, dos 4,7 livros per capita que o brasileiro lê em um ano, 3,4 são livros didáticos ou indicados pelo colégio, o que indica que a escola pode e deve tirar proveito desse protagonismo para que crianças e jovens desenvolvam uma relação mais rica e diversa com a leitura.

Formação de professores e mediadores de leitura

Cientes de que, ao lado da família, a escola ocupa papel central para a formação de leitores, o MEC e as secretarias estaduais e municipais de educação passaram a formular políticas públicas para combater essa defasagem nos índices de leitura. Em 2000, o MEC criou o Profa, um programa de formação de professores alfabetizadores com foco bastante acentuado nas práticas de leitura.

De modo semelhante, outras iniciativas foram surgindo pelo país, como o projeto Ler e Escrever, da Secretaria de Estado da Educação de São Paulo, que além de estabelecer as orientações didáticas para a prática de leitura, procura aproximar o trabalho dos diretores e coordenadores das escolas. "Uma gestão acaba em quatro anos, por isso é preciso dar autonomia e segurança aos quadros intermediários, às diretorias de ensino e aos supervisores para que eles possam dar continuidade ao trabalho", explica Claudia Aratangy, diretora de Projetos Especiais da Fundação para o Desenvolvimento da Educação (FDE) e uma das coordenadoras do Ler e Escrever.

Segundo Maria Alice, essa aproximação com os gestores é fundamental para conscientizá-los da importância das atividades de leitura em sala de aula. "Muitas vezes, essas atividades são preteridas em função da necessidade de ensinar conteúdos específicos da disciplina, como o plural, o verbo etc. Mas a leitura permite assimilar esses mesmos conteúdos de forma viva e agradável, sem o peso de responder exercícios maçantes", conta.

Além do trabalho com professores e gestores, realizado por meio de parcerias com secretarias de educação e cultura, o Entre na Roda não se limita à escola e é voltado para educadores em geral, com diferentes níveis de formação, incluindo voluntários que realizam rodas de leitura em praças públicas, ONGs, hospitais e até penitenciárias. A idéia é que eles também atuem como mediadores, estimulando a leitura por meio de diferentes gêneros e autores. "Após participar de uma formação do projeto, uma bibliotecária de São Carlos expôs os livros de um determinado autor, fornecendo informações sobre sua vida e obra na biblioteca. Com isso, ela ampliou as retiradas de livros de 338 para 1447 naquele mês", conta Maria Alice.

Cativando os leitores

Para incentivar o debate sobre como os livros devem ser utilizados pelos professores, Claudia Aratangy participou da 20ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo, apresentando a palestra "Livros na escola: basta para formar leitores?", que, como ela mesma ressalta, trata-se de uma pergunta retórica: é claro que não é suficiente. "Os livros ficam guardados na escola ou são colocados em salas de leitura pouco freqüentadas, o que dificulta o acesso dos alunos", diz. Ela não só propõe que os professores leiam para os alunos todos os dias, como enfatiza a necessidade de uma mudança nas práticas de leitura. "É preciso compartilhar com os alunos os efeitos que os textos produzem e retratar a beleza de certas expressões ou fragmentos da história. Ao explicitar essas passagens estamos ensinando o que é ser um leitor".

As rodas de leitura propostas pelo Entre na Roda, seja dentro ou fora da escola, seguem o mesmo princípio e procuram estabelecer uma relação que extrapole o simples ato de abrir um livro, com uma conversa anterior e outra posterior à leitura. "A contextualização do que se lê é muito importante para destacar aspectos interessantes do texto e do autor. Criar um clima relacionado à história é uma forma, entre outras, de sensibilizar o leitor para que ele tenha interesse em ouvir ou ler o texto. Depois, o texto dará elementos para a troca de idéias e a reflexão sobre os temas abordados. Isso ajuda a criar um vínculo e uma interação com o grupo", detalha Maria Alice.

A prática social e cotidiana da leitura pode ser estimulada com diferentes textos, adequando a modalidade aos propósitos específicos. "É preciso dialogar com o texto. Pode-se pegar o jornal para comentar as manchetes e as legendas ou estudar por que os textos publicitários utilizam o verbo no imperativo", sugere Claudia. Na opinião de Maria Alice, é necessário ampliar o repertório de leitura e reduzir a influência exclusiva do livro didático, que, muitas vezes traz apenas fragmentos de um texto. "A diversidade é importante para formar o leitor, já que abre diferentes portas de entrada para o mundo da leitura. Os gibis podem ser um bom começo, já que clássicos como Don Quixote são publicados em quadrinhos e podem estimular a criança a ler a obra original no futuro."

Fonte: Cenpec

sábado, 21 de maio de 2011

Uma geração descobre o prazer de ler


Ler obras juvenis ou best-sellers é apenas o começo de uma longa e produtiva convivência com os livros. Essa é a lição que anima os jovens a se aventurarem na boa literatura atual e nos clássicos
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Bruno Meier
Para a catarinense Taize Odelli, de 21 anos, Vergonha, de Salman Rushdie, é uma fantasia feita para chocar e evidenciar até onde a pessoa, uma família ou um país pode chegar na desonra. Crime e Castigo é uma leitura atraente pela complexidade e pela construção do perfil psicológico dos personagens criados pelo russo Fiodor Dostoievski. Ma ela desdenha de Madame Bocary, de Gustave Flaubert. "As cinquentas páginas iniciais, até o primeirocaso da protagonista, são monótonas", opina. Desde 2009, Taize critica  dois livros por semana em seu blog, Rizzenhas. Tem parceria com quatro editoras, enviam a ela exemplares de seus lançamentos, com vista a atrair o público jovem por meio da resenhista novinha. Mesmo sem incentivo familiar, Taize sempre foi boa leitora. Mas o hábito virou vício quando pegou emprestado o terceiro volume da série Harry Potter. "Desde então, não fiquei uma semana sem ler."  Sua média é de 10 livros por mês - e o trajeto trajeto de 45 minutos enrtre São Leopoldo, onde mora, e Porto Alegre, onde estagia, favorece o ritimo da leitura. "A literatura ajuda a ter sensao crítico, diz.

Deixe-se o sexo para uma discussão posterior. No que diz respeito à leitura, uma graciosa menina carioca é uma das inúmeras evidencias do que se lê na capa de VEJA. Em janeiro, a universitária Iris Figueiredo, de 18 anos, anunciou em seu blog a intenção de organizar encontros para discutir clássicos da literatura. A ideia era reunir jovens que estavam cansados de ler as séries de ficção que lideram as vendas nas livrarias e passar a ler obras de grandes autores. Trinta respostas chegaram rapidamente. No mês seguinte, o evento notável de Iris começou: vinte adolescentes procuraram uma sombra junto ao Museu de Arte Contemporânea de Niterói - cada um com seu exemplar de Orgulho e Preconceito, da inglesa Jane Austen, debaixo do braço e sentaram-se para conversar. Durante duas horas, leram os trechos de sua preferência, analisaram a influência da autora sobre escritores contemporâneos (descobriram, por exemplo, que certas frases do romance foram emuladas em diálogos da série O Diário de Bridget Jones, de Helen Fielding) e destrincharam os dilemas pelos quais passaram a vivaz Elizabeth Bennett e o arrogante Mr. Darcy, os protagonistas do romance. Iris se entusiasma ao falar do sucesso de suas reuniões que já abordaram títulos como O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, 1984, de George Orwell, e Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca. Desde pequena, ela é boa leitora. Mas foi só ao descobrir a série Harry Potter que se apaixonou pela leitura e a transformou em parte central de seu dia a dia. Quando a saga do bruxinho virou mania entre as crianças e os adolescentes, uma década atrás, vários críticos apressaram-se em decretar que esse seria um fenômeno de resultados nulos. Com o eminente crítico americano Harold Bloom à frente, argumentavam que Harry Porter só formaria mais leitores de Harry Potter os livros da inglesa J.K. Rowling seriam incapazes de conduzir a outras leituras e propiciar a evolução desses iniciantes. Jovens como Iris desmentem essa tese de forma cabal. Ler é prazer. E, uma vez que se prova desse deleite, ele é mais e mais desejado. Basta um pequeno empurrãozinho como o que a universitária ofereceu por meio do convite em seu blog - para que o leitor potencial deslanche e, guiado por sua curiosidade, se aventure pelos caminhos infinitos que, em 3000 anos de criação literária, incontáveis autores foram abrindo para seus pares.

Várias vezes, no decorrer do último século, previu-se a morte dos livros e do hábito de ler. O avanço do cinema, da televisão, dos videogames, da internet, tudo isso iria tornar a leitura obsoleta. No Brasil da virada do século XX para o XXI o vaticínio até parecia razoável: o sistema de ensino em franco declínio e sua tradição de fracasso na missão de formar leitores, o pouco apreço dado à instrução como valor social fundamental e até dados muito práticos, como a falta e a pobreza de bibliotecas públicas e o alto preço dos exemplares impressos aqui, conspiravam (conspiram, ainda) para que o contingente de brasileiros dados aos livros minguasse de maneira irremediável. Contra todas as expectativas, porém, vem surgindo uma nova e robusta geração de leitores no país movida, sim, por sucessos globais como as séries Harry Porter, Crepúsculo e Percy Jackson. Em 2005, a rede de livrarias Saraiva vendeu 277000 exemplares de títulos voltados para o público infantojuvenil. Em 2010, foram 1,7 milhão - um estarrecedor aumento de 514%. O crescimento deve-se em parte à ampliação da rede, com a compra da Siciliano, em 2008. Mas nenhum outro segmento se desenvolveu tanto quanto o juvenil.

Também para os cidadãos mais maduros abriram-se largas portas de entrada à leitura. A autoajuda (e os romances com fortes tintas de autoajuda, como A Cabana) é uma delas; os volumes que às vezes caem nas graças do público, como A Menina que Roubava Livros, ou os autores que tem o dom de fisgar com suas histórias, como o romântico Nicholas Sparks, são outra. E os títulos dedicados a recuperar a história do Brasil, como 1808, 1822 ou Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, são uma terceira, e muito acolhedora, dessas portas. É mais fácil tornar a leitura um hábito, claro, quando ela se inicia na infância. Mas qualquer idade é boa, é favorável, para adquirir esse gosto. Basta sentir aquele comichão do prazer, e da curiosidade - e então fazer um esforço, bem pequeno, para não se acomodar a uma zona de conforto, mas seguir adiante e evoluir na leitura.


Um livro puxa outro, não há dúvida. Por isso, nas páginas desta reportagem. VEJA oferece sugestões de caminhos pelos quais enveredar a partir de certos pontos iniciais que as listas de mais vendidos comprovam ser eficazes: as séries Harry Potter e Crepúsculo, os best-sellers A Cabana e A Menina que Roubava Livros e os romances de Nicholas Sparks. Os aventureiros de espírito podem zarpar de um desses pontos e chegar a destinos fulgurantes como Moby Dick., Grande Sertão: Veredas ou Em Busca do Tempo Perdido.
Veja-se o exemplo da universitária catarinense Taize Odelli, de 21 anos. Taize, como a carioca Iris Figueiredo, caiu de amores pela leitura por meio de Harry Potter; anos atrás. Hoje, discute com desenvoltura sobre a obra do clássico russo Fiodor Dostoievski ou a do contemporâneo anglo-indiano Salman Rushdie. Taize percorreu esse trajeto levada por sua curiosidade, e agora cuida de despertá-la em outros jovens como ela. A cada mês, recebe cerca de dez lançamentos de quatro editoras nacionais e os resenha em seu blog. Para as editoras, ela é uma ponte com um público que resiste aos canais tradicionais de divulgação, como jornais e revistas. Para a garotada que acompanha seu blog (ou o de Iris, que, funcionando nos mesmos moldes, conta cerca de 16000 acessos mensais), ela é um caminho alternativo: os livros, na escola, costumam ser motivo de tédio; redescobri-los como fonte de deleite, passo a passo com pessoas da mesma idade, é um papel que a internet sim, uma daquelas invenções que iriam assassinar a leitura, segundo os pessimistas vem desempenhando de forma espontânea e com surpreendente eficácia. "Não gosto de Machado de Assis até hoje porque lembro que fui obrigado a lê-lo no colégio quando ainda não estava preparado", diz o administrador paulista Eduardo Ribeiro. Machado de Assis é frequentemente um dos primeiros autores a ser indicados como leitura obrigatória em sala de aula e tem se tornado um pesadelo para qualquer docente que deseja transformar a leitura em fruição e não em aversão. "Exigir a leitura de Memórias Póstumas de Brás Cubas e marcar uma prova semanas depois definitivamente não é o caminho", diz a pedagoga Elizabeth Baldi, fundadora da Escola Projeto, em Porto Alegre.

Os leitores adolescentes impulsionaram os maiores sucessos das livrarias na última década. Nunca se produziu, traduziu e fez circular tanto livro para eles como agora e na lista de mais vendidos de VEJA, na categoria ficção, eles figuram nas melhores posições. A série Harry Potter com vendas mundiais que ultrapassam os 400 milhões de exemplares (no Brasil, chegaram a 3 milhões), detonou essa onda, é evidente. Em 2008, um novo sucesso surgiu no país: a saga Crepúsculo, com 120 milhões de exemplares comercializados (5,5 milhões no Brasil). E aí o fenômeno começou a ganhar novos contornos: através de comunidades e perfis nas redes sociais, os adolescentes passavam horas discutindo o destino da menina Isabella Swan e do vampiro Edward Cullen - e, nessa fase, se um amigo demonstra um interesse, é rapidamente copiado pelos outros. "Não é mais possível lançar um livro para esse público sem pensar numa estratégia de atração por meio das redes sociais", diz Jorge Oakim, editor da Intrínseca. Ele é um caso exemplar de ajuste às mudanças ocorridas no mercado editorial. Desde a inauguração de sua editora, em 2003, viu seu negócio mudar radicalmente: no início, 15% dos lançamentos eram destinados ao público jovem - Atualmente; esse número saltou para 80% -, e esse mesmo percentual representa o faturamento atual da editora com os jovens.

No meio do curso na faculdade, garotas como a carioca Iris Figueiredo e a catarinense Taize Odelli não estão ainda pensando em emprego. Mas não é exagero especular que, com seus blogs de resenhas, já estão se profissionalizando. Mesmo quando os benefícios dos livros não parecem tão imediatos. porém, eles são concretos e até quantificáveis. Um estudo divulgado no mês passado pela Universidade Oxford demonstra uma conexão inequívoca entre leitura e sucesso profissional. Conduzida pelo americano Mark Taylor, do departamento de sociologia, a pesquisa ouviu 17 200 pessoas nascidas em 1970. Comparou as atividades extracurriculares desenvolvidas por elas quando tinham 16 anos com a sua posição hierárquica aos 33. A leitura se revelou o único fator que, de forma consistente, esteve associado à ascensão profissional. Para as mulheres. a chance de ter um cargo mais elevado cresce de 25% para 39% quando lêem; para os homens, de 48% para 58%. Nenhuma outra atividade - cinema, esportes, visitas a museus e galerias - teve impacto significativo. O progresso pode estar associado ao desenvolvimento do vocabulário e ao domínio de conceitos abstratos propiciados pelo hábito da leitura. E vale enfatizar: a pesquisa centrou-se na leitura extracurricular. Ou seja, o livro lido por prazer - e não porque foi exigido em uma disciplina escolar - é o que realmente conta.

Para quem não tem o hábito da leitura (e, entre os brasileiros, muitos não o tem), o projeto de se tornar um leitor sofisticado pode parecer inatingível e tedioso, e cansativo. (Inútil não o é mesmo, como está demonstrado no parágrafo acima.) Mas imagine se, dez anos atrás, alguém pedisse a você que tomasse decisões com a carga de responsabilidade das que toma hoje, ou que manejasse os programas de computador que hoje lhe são habituais: impossível, assustador. Com a leitura, dá-se esse mesmo processo de aprendizado, cumulativo e, por que não, suave. Se atualmente a sua leitura preferida são os romances adocicados de Nicholas Sparks e outros autores do gênero, um livro como Guerra e Paz, de Leon Tolstoi, talvez pareça impenetrável (e chato). Ora, a saída simples e prazerosa é percorrer um circuito menos acidentado. Passe antes por Tess, de Thomas Hardy, ou até por um conto breve como Bola de Sebo, de Guy de Maupassant. Um livro não apenas puxa outro, como prepara para o seguinte. Em um ano, ou dois, ou três, quando abrir de novo as páginas de Guerra e Paz, é provável que a leitura já lhe pareça agradável e instigante e não mais um martírio.
Ler é indispensável para aqueles que querem se expressar bem: mostra as diversas possibilidades da língua, aumenta o vocabulário e enriquece o conhecimento. "E a forma mais eficiente de saber e de humanizar-se, colocando-se no papel do outro. Deixa a pessoa mais próxima da civilização e mais distante da barbárie" diz o escritor Miguel Sanches Neto, exemplo de cidadão que, mesmo num ambiente de pobreza material e cultural, buscou o melhor da literatura. Todas essas benesses, porém, só são adquiridas quando o leitor passa a buscar uma leitura mais seletiva e procura o melhor que os autores clássicos e célebres já produziram ao longo do tempo. "Existem livros que tratam a pessoa como consumidora e acompanhante passiva da história. Esses dispensam a atividade do leitor", diz Luís Augusto Fischer, professor de literatura brasileira na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autor de Filosofia Mínima - Ler; Escrever; Ensinar, Aprender. E aí se chega a uma recomendação importante: nos primeiros meses, não importa muito o que a pessoa lê, desde que ela adquira a habilidade essencial de ler apenas por prazer. Tom Wolfe, um dos mais celebrados jornalistas e escritores americanos, leu apenas e tão somente sobre beisebol até os 16 anos de idade - mas leu.

A leitura consolidou-se como uma experiência individual e solitária. E lendo em silêncio, para nós mesmos, que melhor entendemos e apreciamos uma obra - qualquer obra. seja o árduo Paraíso Perdido, de John Milton, ou o saboroso Alta Fidelidade, de Nick Hornby. Relembrando a juventude em suas Confissões, Santo Agostinho expressa sua surpresa ao ver como, em torno do ano 384, Santo Ambrósio, bispo de Milão, realizava suas leituras: "Quando ele lia, seus olhos perscrutavam a página e seu coração buscava o sentido, mas sua voz ficava em silêncio e sua língua, quieta". Na Antiguidade, lia-se em voz alta, até para ajudar no entendimento das frases. pois ainda não existiam sinais de pontuação. Não admira, portanto, que Agostinho tenha registrado com tanta ênfase a quietude concentrada de seu mestre. O mergulho quase solipsista na página, a absorção na voz íntima do livro, que hoje reconhecemos na pessoa que lê em uma biblioteca universitária, em uma praça ou em um banco de ônibus, era ainda excepcional. Em Uma História da Leitura, Alberto Manguel informa que a leitura silenciosa só se tornaria usual no Ocidente a partir do século X. Em um ensaio sobre o culto aos livros, o escritor argentino Jorge Luis Borges - um dos maiores leitores do século XX - descobre na atitude descrita por Santo Agostinho a prefiguração de uma nova postura cultural em relação ao livro: "Aquele homem passava diretamente do signo da escrita à intuição, omitindo o signo sonoro; a estranha arte que se iniciava, a arte de ler em voz baixa, conduziria a consequências maravilhosas. Conduziria, passados muitos anos, ao conceito de livro como fim, não como instrumento de um fim.

Ainda assim, subsistem formas de congraçamento social em torno do livro. Ler para o outro pode ser uma forma de generosidade ou uma celebração do talento. No século XIX, o romancista ingles Charles Dickens atraía multidões para as sessões públicas de leitura de seus romances. Em âmbito bem mais modesto, no Brasil, José de Alencar lembra, em Como e Porque Sou Romancista, que era chamado por sua mãe e outras mulheres da família para ler em voz alta folhetins açucarados, que elas ouviam, às lágrimas, enquanto costuravam e faziam tarefas domésticas. Festivais de literatura contemporâneos continuam a trazer escritores consagrados para sessões de leitura de suas obras. De novo, pode ser também a tecnologia a varinha de condão que reúne os homens em torno dos livros e ideias: o Kindle, leitor digital comercializado pela megalivraria global Amazon, possui ferramentas que fazem com que o usuário tenha a sensação de que não está sozinho. Ao sublinhar um trecho de um capítulo que atraiu particularmente sua atenção, por exemplo, o usuário é informado do número de leitores que marcaram a mesma passagem. Outros recursos permitem o gesto amigável de emprestar um livro digital a outra pessoa, ou ouvir o texto em voz alta. O que hoje entendemos como literatura precede a escrita: a Ilíada e a Odisseia, os dois grandes épicos gregos compostos em torno de VII a.C. e atribuídos a Homero, surgiram como poemas a ser memorizados e recitados, e não lidos. Seja qual for o meio - a voz, o papel, a tela do leitor eletrônico -, a leitura existe para isso: para ligar os homens pelo fio comum de sua experiência.

Cena verídica observada em um dos mais caros shopping centers paulistanos: uma mãe passeia (1878), pelos corredores com seus dois filhos, de uns 5 e 8 anos, quando o mais velho exclama, entusiasmado: "Olha, uma livraria! Vamos lá, mamãe?" Ao que ela repreende, seguindo na direção contrária: "Livraria? E o que é que você quer fazer lá?". Ora, mamãe, por favor. Da próxima vez, deixe que seu filho a puxe pela mão e se perca entre as estantes. E aproveite para fazer o mesmo. Você vai se surpreender com o que encontrará lá e consigo mesma.

Fonte: Veja

sexta-feira, 13 de maio de 2011

"Um Bom Livro" - Xuxa Só Para Baixinhos 8



Letra da Música "Um Bom Livro"

A leitura é o nosso avião,
Rumo a imaginação,
Um bom livro faz a gente viver,
Aventuras e ação.

Somos piratas da perna de pau,
Navegando em um vendaval,
Naquela ilha queremos parar,
Nosso navio vamos atracar.

A leitura é o nosso avião,
Rumo a imaginação,
Um bom livro faz a gente viver,
Aventuras e ação.

Tenho poderes, posso voar,
Eu tenho a força,
(Socorro! Socorro!)
Vou te salvar.

Sou um duende,
Você também,
Da natureza,
Nós cuidamos bem.

Toda alegria,
Da nossa floresta,
Vem do amor,
Que a gente tem.

A leitura é o nosso avião,
Rumo a imaginação,
Um bom livro faz a gente viver,
Aventuras e ação.

A leitura é o nosso avião,
Rumo a imaginação,
Um bom livro faz a gente viver,
Aventuras e ação.

Vivo na selva,
Com o Tarzan,
Mas essa história,
Conto amanhã.
(Vem amor)

Circulação de livros

Talita Rustichelli
vida@folhadaregiao.com.br

Projeto "Pontos de leitura" ganha novos espaços, na praça João Pessoa e pronto-socorrodo bairro São João; a ideia é distribuir exemplares para que as pessoas criem o hábito de ler.


Na maioria das vezes a literatura precisa ir até o público para fisgá-lo definitivamente. Projetos para proporcionar o acesso à leitura têm sido popularizados no mundo todo, como o BookCrossing (em português, cruzamento de livros), que surgiu nos Estados Unidos e chegou a outros países, inclusive ao Brasil.

A ideia deste projeto, por exemplo, é distribuir livros em bancos de praças e outros locais, para que as pessoas possam levar, ler e depois colocar de volta em circulação nas ruas, a fim de que outros possam fazer o mesmo.

Em Araçatuba, para fortalecer o hábito da leitura, a Secretaria de Cultura do município implantou o projeto "Pontos de Leitura". Em lugares estratégicos da cidade, são disponibilizados gratuitamente livros, revistas, jornais e afins, para que a população possa ler, levá-los, trocá-los ou devolvêlos, sem necessidade de nenhuma burocracia.

Ontem, o pronto-socorro municipal localizado no bairro São João ganhou um Ponto de Leitura. "Não é necessário fazer nenhum cadastro, tanto para utilizar quanto para doar. Quem quiser doar, basta deixar o material na estrutura que está identificada com uma placa", explica o secretário de cultura, Hélio Consolaro.

A autônoma Aliete Oliveira Cruz, 49 anos, ficou contente ao saber do projeto e ficou estimulada a fazer doações. Enquanto aguardava uma amiga ser medicada no pronto-socorro, pegou um livro e embarcou na leitura. "Eu não conhecia o projeto e era inesperado encontrar livros disponíveis aqui. É ótimo porque ajuda a colocar a mente para funcionar e incentiva as pessoas que estão ali em um momento 'ocioso' a lerem".

Na semana passada, outro novo ponto foi instalado na Praça João Pessoa, em parceria com uma comerciante apaixonada pela leitura, Madalena Carlini, 69, e com a empresa Chade & Cia, que cedeu a estrutura, uma geladeira com porta de vidro e sem motor. A estrutura foi chumbada no local no dia 28 de abril e os livros começaram a ser doados e disponibilizados a partir do dia 29.

SONHO

Madalena, que procurou a Secretaria de Cultura para propor uma parceria e foi responsável pela mobilização de alguns dos doadores, conta que tem neste projeto a realização de um sonho antigo. "Minha vontade é ver as pessoas lendo, aproximá-las do mundo da leitura. Adoro ler e creio que quem se aproxima realmente desse universo fica fascinado", afirma.

Segundo Consolaro, a cidade possui outros três pontos de leitura: um no pronto-socorro municipal do bairro Santana, um na Prefeitura (sala de espera da Secretaria da Fazenda) e outro na recepção da Secretaria de Cultura. "A ideia é expandir ainda mais o projeto, levando-o a outros bairros da cidade. Interessados em apoiar com doações de livros ou estruturas podem procurar a Secretaria", diz.


Único compromisso é passar o livro adiante ou deixar em lugar público

Diferente do projeto araçatubense Pontos de Leitura, o BookCrossing não se limita a ação de "libertar" livros na rua. Os livros são registrados no site (no Brasil, http://www.bookcrossing.com.br/) e recebem um número de identificação, o que permite uma forma de rastreamento.

Depois, o doador avisa quando e em que parte da cidade irá deixar o livro. O objetivo é que alguém o recolha e, através do número de identificação, registre no site que o encontrou. A inscrição no site é gratuita.

Derivado do BookCrossing, no Brasil foi implantando o Livro de Rua (http://www.livroderua.com.br/), cuja proposta é circular os livros também em áreas carentes e ainda instalar as "bibliotecas da liberdade" nesses locais.

Assim como o projeto araçatubense "Pontos de Leitura", qualquer pessoa pode levar quantos livros quiser, sem necessidade de fazer cadastro e sem a obrigação de devolver os exemplares. Porém, o único compromisso é passar o livro adiante ou deixar em lugar público.

O projeto teve início em 2009 no Rio de Janeiro, sob coordenação do Instituto Ciclos do Brasil, e se expandiu para outras cidades, como São Paulo, onde chegou neste mês de abril, Belo Horizonte e Brasília.

Em Brasília, há também o projeto Parada Cultural, a partir da iniciativa de um comerciante, que instalou inicialmente uma pequena biblioteca em seu açougue. Outras minibibliotecas estão disponíveis em pontos de ônibus da cidade.

Edmir Perrotti: "Biblioteca não é depósito de livros"

Idealizador de redes de leitura em escolas diz que é função do educador ajudar os estudantes a processar as informações do acervo

Márcio Ferrari

Desafios como a criação do hábito da leitura entre crianças e adolescentes, as novidades tecnológicas, a ampliação do acesso ao ensino e a sofisticação do mercado editorial levaram o professor Edmir Perrotti a uma nova concepção de biblioteca escolar e de seu papel pedagógico.

Com formação em Biblioteconomia - área que combinou com seu interesse em Educação -, ele é docente da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, conselheiro do Ministério da Educação para a política de formação de leitores e autor de livros infantis.

Perrotti orientou a implantação de redes de bibliotecas inovadoras nas escolas municipais de São Bernardo do Campo, Diadema e Jaguariúna, no estado de São Paulo. Nessas estações de conhecimento, como ele prefere chamá-las, a aprendizagem é estimulada pela presença de suportes tecnológicos, como o computador e a televisão.

Em um ambiente que convida as crianças a descobrir e aprofundar o prazer da leitura, os livros convivem com outras linguagens, como a do teatro. "Assim trabalha-se o contato com as informações e também o processamento delas", diz. Ex-professor da Universidade de Bordeaux, na França, e de escolas de Ensino Fundamental no Brasil, além de editor e crítico literário, Perrotti concedeu a seguinte entrevista a NOVA ESCOLA.

O que deve orientar a constituição de uma biblioteca escolar?
Edimir Perrotti Ela não pode restringir-se a um papel meramente didático-pedagógico, ou seja, o de dar apoio para o programa dos professores. Há um eixo educativo que a biblioteca tem de seguir, mas sua configuração deve extrapolar esse limite, porque o eixo cultural é igualmente essencial. Isso significa trazer autores para conversar, discutir livros, formar círculos de leitores, reunir grupos de crianças interessadas num personagem, num autor ou num tema. A biblioteca funciona como uma ponte entre o ambiente escolar e o mundo externo.

De que modo se realiza essa abertura para fora da escola?
Perrotti O responsável pela biblioteca tem o papel de articular programas com a biblioteca pública e fazer contato com a livraria mais próxima, além de estar atento à programação cultural da cidade. Há uma série de estratégias possíveis para inserir a criança num contexto letrado. A biblioteca precisa ter outra finalidade que não seja simplesmente a de um depósito de onde se retiram livros que depois são devolvidos. Nós não trabalhamos mais com a idéia de unidades isoladas. O ideal é formar redes, um conjunto de espaços que eu chamo de estações de conhecimento, cujo objetivo é a apropriação do saber pelas crianças.

Qual é a necessidade das redes?
Perrotti Com o atual excesso de informações e a multiplicação de suportes, nenhuma biblioteca dá conta de todas as áreas em profundidade, até porque não haveria recursos para isso. O trabalho tem de ser compartilhado com outras unidades da rede, por meio de mecanismos de busca informatizados. Por exemplo: a escola guarda um pequeno acervo inicial sobre arte, mas, se o interesse for por um conhecimento aprofundado, recorre-se a uma biblioteca especializada na área. Hoje não há mais condições de manter o antigo ideal de bibliotecas enciclopédicas, que abarcavam todas as áreas de conhecimento.

Quem deve ser o responsável pela biblioteca?
Perrotti Processar as informações e criar nexos entre elas é um ato educativo. O responsável, portanto, é um educador para a informação, que nós chamamos de infoeducador, um professor com especialização em processos documentais. Uma rede de bibliotecas tem uma plataforma de apoio técnico-especializado, que é a área do bibliotecário, um especialista em planejamento e organização da informação. Junto com ele trabalham os educadores, que são especialistas em processos de mediação de informação. Dar acesso ao acervo não basta para que o aluno saiba selecionar e processar informações e estabelecer vínculos entre elas.

De que modo se estimula a autonomia numa biblioteca?
Perrotti É preciso desenvolver programas para construir competências informacionais. Isso inclui desde ensinar a folhear um livro — para crianças bem pequenas — até manejar um computador. Antigamente imperava a idéia de que os adultos é que deveriam mexer nas máquinas e pegar os livros na estante. Hoje deve-se formar pessoas que tenham uma atitude desenvolvida, não só de curiosidade intelectual mas de domínio dos recursos de informação. Essa é uma questão essencial da nossa época.

Por que a escola tem falhado em ensinar os alunos a processar informações?
Perrotti Porque se acredita que basta escolarizar as crianças para formar leitores. De fato, a escola tem o papel de construir competências fundamentais para a leitura, mas isso não quer dizer formar atitude leitora. Hoje, o que distingue o leitor das elites do leitor das massas é que o primeiro tem um circuito de trocas. Ele participa do comércio simbólico da escrita, da produção à recepção: sabe o que é publicado, informa-se sobre os autores, encontra outros leitores etc. Já a criança da escola pública muitas vezes não tem livros em casa e só lê o que o professor pede. Ela não tem com quem comentar. Está sozinha nesse comércio das trocas simbólicas.

Qual é o mínimo necessário para o funcionamento de uma biblioteca escolar?
Perrotti Estou convencido de que é a pessoa que trabalha ali, mediando relações entre a criança, a informação e o espaço. Não precisa ser alguém superespecializado, mas que compreenda a função da escrita e da imagem e que saiba qual é a importância daquilo na vida das pessoas. Assim, a compra de livros seguirá um critério de escolha consciente. É claro que é bom construir um ambiente agradável e funcional, mas não é indispensável, porque a leitura não depende das instalações da biblioteca; ela se dá em qualquer lugar.

Quem deve escolher o acervo?
Perrotti Nós temos trabalhado um modelo em que a escolha é feita por todos os que participam dos processos de aprendizagem: professores, coordenadores, diretores e alunos. Formulários são colocados à disposição para que sejam feitas sugestões de compra. O infoeducador não só coleta esses dados como divulga, por meio dos quadros de aviso, as informações sobre lançamentos que saem na imprensa e na internet. Depois, ele vai analisar os pedidos, separá-los em categorias — livros importantes para os projetos em andamento, leituras de informação geral ou complementares etc. — e, com base nessas listas, a escolha é feita de acordo com os recursos disponíveis.

Como comprometer o aluno com a organização e a manutenção da biblioteca?
Perrotti Ele participa da escolha do acervo e também pode estar pessoalmente representado nele, por meio de livros que ele escreve e de documentos de sua passagem pela escola. Uma parte do acervo vem da indústria cultural e outra é produzida internamente, com documentos e relatos referentes à história da instituição. Formar um repertório de dados locais cria relações com as informações universais.

Descreva a biblioteca escolar ideal.
Perrotti É aquela que possui todo tipo de recurso informacional, do papel ao equipamento eletrônico. O espaço é construído especialmente para sua finalidade e de acordo com quem vai usar. Se o público majoritário é infantil, a disposição dos móveis e do acervo deve permitir que a criança se mova com autonomia. É preciso ser um local acolhedor, mas que empurre rumo à aventura, porque conhecer é sempre se deslocar.

Por que se diz que os jovens não gostam de ler?
Perrotti Os interesses mudam na passagem da infância para a adolescência e a leitura que era feita antes já não interessa tanto, mesmo porque cresce a concorrência de outras mídias. Essa é uma transição crítica e ainda não foram definidas ações específicas para promover a leitura nessa faixa etária. Os adolescentes identificam o livro com as tarefas da escola, que reforça essa percepção porque raramente sai da abordagem instrumental da leitura. E no âmbito social, entre os amigos, a leitura não está presente. Mesmo assim, essa fase é a das grandes paixões. Portanto, há um espaço enorme para promover a leitura entre os jovens.

É possível formar leitores por meio de políticas públicas?
Perrotti O problema é saber que caráter elas têm. Eu não concordo com estratégias que pretendam ensinar os alunos a gostar de ler. A função do poder público é criar ambientes que dêem condições de ler, tentar despertar as crianças para as potencialidades da escrita, prepará-las para as competências leitoras — enfim, providenciar para que seja constituída a trama que sustenta o ato de ler. Mas gostar de ler é questão de foro íntimo, não de políticas públicas.

A escola deve obrigar um aluno a ler livros e freqüentar bibliotecas mesmo que ele não goste?
Perrotti Não se pode deixar de perguntar por que esse aluno não gosta de ler. Ele teve uma relação negativa com a situação de aprendizagem? Ninguém lê em casa? Tem dificuldades de visão? Não domina o código? Não tem circuitos culturais a sua volta? Tudo isso pode e deve ser trabalhado. Agora, se ele teve apoio para experimentar a prática da leitura e prefere fazer outras coisas, não adianta forçar. É claro que não estou falando da leitura funcional, indispensável para a vida diária. Nesse caso, é obrigatório negociar com a criança o "não querer ler".

É melhor ler literatura de má qualidade do que não ler nada?
Perrotti A pergunta já supõe que de fato existe uma literatura de má qualidade. Há leitores que são capazes de voar longe com um suposto mau livro, assim como há muitos trabalhos escolares que se utilizam de grandes textos, mas sufocam o interesse de aprender. Por outro lado, não é possível deixar o gosto do leitor imperar sozinho. É fundamental operar mediações entre as crianças e uma literatura que tenha condições de produzir significações importantes.

O uso do livro em sala de aula está em decadência?
Perrotti Ele está aquém do que gostaríamos que fosse e também do que seria necessário. Mesmo assim, o livro está entrando nas escolas numa medida que não entrava, nem que seja por meio das distribuições feitas pelo Ministério da Educação e as secretarias estaduais e municipais. Há 50 anos nem sequer se sonhava com isso no Brasil. O problema maior é o de mau uso desses livros, com estratégias impositivas de leitura. Muitas vezes falta penetrar no avesso dos textos com as crianças e realmente mergulhar numa viagem de conhecimento, de imaginação.

Até que ponto as bibliotecas levam ao hábito da leitura?
Perrotti Eu participei de uma pesquisa feita com as crianças usuárias das redes de biblioteca que ajudei a implantar no estado de São Paulo. Queríamos saber se elas estão incorporando a leitura a sua prática de vida e não apenas como lição de casa. Qual é a constatação? Houve um grande avanço e as crianças se mostram muito mais familiarizadas com os livros, mas infelizmente ainda não usam as novas competências para trocas culturais. Por exemplo: não têm o hábito de comprar e emprestar livros. A prática escolar não se transferiu para a prática cultural.

Há perspectiva de mudança para essa situação?
Perrotti Eu vejo uma tendência de funcionalização. Os meios eletrônicos trouxeram, aparentemente, uma presença maior da escrita, mas o uso que se faz dela é cada vez mais abreviado. Vai-se transformando a língua no elemento mínimo para a transmissão da mensagem. Nós estamos a anos-luz de formar pessoas que, ao cabo do período de escolaridade, vão se relacionar com a escrita como uma ferramenta de conhecimento e de experiências estéticas, numa dimensão não pragmática. Restringir as ferramentas de linguagem a sua função utilitária é retirar de nós mesmos aquilo que nos humaniza — a capacidade de dizer de uma forma articulada. As novas bibliotecas têm de enfrentar essa questão.

Desordenar uma Biblioteca: comércio & indústria da leitura na escola

Miguel Sanches Neto

Conta uma lenda que, décadas atrás, certos professores puritanos de determinada universidade do Paraná, movidos por um zelo extremo, saíam, armados de impiedosas tesouras, à caça de trechos imorais dos romances. Reza ainda esta lenda que muitos livros (principalmente os de Eça de Queirós) foram “corrigidos” pelos zelosos censores.

Esta pequena história pode nos parecer bizarra. Quem hoje censuraria o moderado Eça? No entanto, diversas vezes somos surpreendidos exercendo outros tipos de censura, também injustificáveis.

Uma verdadeira biblioteca, ainda mais quando se trata de uma biblioteca escolar, deve conter todo tipo de livro. É a variedade e não a especialização que define a qualidade de um acervo. Todos os livros, dos comerciais aos sérios, devem aprender a conviver, pacificamente ou não, nas estantes. É fundamental que não tentemos impor nossas preferências, uma vez que a clientela à qual eles são destinados é um feixe de destinos virtuais. A função pedagógica que nos cabe é estimular o florescimento destas virtualidades e não tentar conduzi-las para um caminho que julgamos o melhor.

Os ditos livros de estudo, os que têm uma função reconhecida na formação do aluno, precisam estar misturados com os de ficção. Em se tratando de literatura (no sentido mais amplo da palavra), todas as divisões são restritivas. A biblioteca, como um espaço aberto, tem, desde que concebida de forma menos tradicional, o papel de apagar estas fronteiras que são movediças. José Saramago, em uma passagem de O ano da morte de Ricardo Reis (Cia. das Letras, 1993), deixa reflexões valiosas para o tema que nos ocupa: “Um homem deve ler tudo, um pouco ou o que puder, não se lhe exija mais do que tanto, vista a curteza das vidas e a prolixidade do mundo. Começará por aqueles títulos que a ninguém deveriam escapar, os livros de estudo, assim vulgarmente chamados, como se todos o não fossem” (p. 141). Concebendo todos os tipos de livros como portadores de conhecimento, de graus e espécies diferentes, estaremos evitando cair no equívoco de julgar que tais ou tais obras são mais (ou menos) adequadas ao leitor mirim.

A biblioteca escolar que se queira eficaz tem que se assumir como uma infinidade de janelas abertas para o mundo e transmitir ao aluno o direito de escollher por qual delas quer ele olhar. Os efeitos da leitura não podem ser previamente defiidos de pelo educador. Ler é sempre uma atividade cujos resultados são imprevisíveis.

Mas a formação de uma biblioteca escolar não se restringe à buca da heterogeneidade. Ela está também diretamente relacionada com alguns aspectos das instalações físicas que, não raro, são fruto duma concepção equivocada da função deste espaço. A biblioteca é sempre encarada como um anexo da escola. Mas, na verdade, ela é a sua alma. Para se atingir este local é necessário, na grande maioria das vezes, empreender uma aventura digna de Indiana Jones. Vejamos com poderia ser o “Breve guia para uma viagem à biblioteca”:

Entre no quarto corredor à esquerda, ande 20 metros, vire à direita, passe ao lado do cão de guarda que vigia a residência do caseiro, pule a pequena valeta por onde escorre a água da chuva (cuidado!, quando molhado o terreno é escorredio), ande mais 50 metros e então encontrará um barracão abandonado, que serve de depósito, atravesse-o de uma extremidade à outra, no fundo descobrirá uma porta e nela deve haver (se ainda não foi arrancada) uma placa dizendo: Biblioteca. Entre sem bater e fique em silêncio.

A biblioteca não pode ser vista como um lugar secundário do estabelecimento escolar. Ela é o cerne do ensino e como tal deve ocupar uma localização privilegiada. Tomemos como exemplo o comerciante que tem que abrir uma empresa. E não escolherá um beco sem saída, uma rua morta ou um porão para instalar seu negócio. Terá, isto sim, todo o cuidado de ver qual é a região mais movimentada e mais destacada para o seu estabelecimento. Ora, a biblioteca, como todo ponto comercial, tem que ser instalada levando em consideração estes pré-requisitos. Para que possa funcionar adequadamente, é importante que se avizinhe dos lugares mais movimentados durante os intervalos ou na entrada e saída dos alunos, que tenha suas portas dando para os pátios, estabelecendo assim uma comunicação direta com o espaço do lazer.

O que falta às pessoas que cuidam dessas bibliotecas (não ouso chamá-las de bibliotecárias) é um certo ardil comercial. Uma livraria, para vender seus produtos cria mecanismos de divulgação, de excitação da leitura. A biblioteca escolar é obrigada, se quer ter um papel ativo, a também se valer de artimanhas mercadológicas: criar vitrines (mesmo que sejam improvisadas), levando assim o livro para fora da biblioteca (para os lugares onde os alunos ficam quando não estão em aula), criar a lista dos livros de seu acervo que são os mais lidos etc. Um recurso bem simples (embora exija certa movimentação) é a mudança de parte dos volumes e da funcionária para o pátio. Os livros podem ficar expostos em algumas estantes destinadas a este fim, ou em bolsas de plástico transparente fixadas na parede, ou mesmo em panos estendidos no chão. A funcionária vai fazer o empréstimo ali mesmo, fornecendo ao aluno o acesso ao acervo de forma mais atrativa. Dessa maneira, poderíamos definir esta prática, continuando o paralelo empresarial, como uma sorte de show room.

Assim estaremos mudando o trânsito de mão única que obriga o leitor a ir até a biblioteca. É mais produtivo levar o livro até o leitor do que o inverso. Qualquer promotor de vendas sabe disso. Sou frontalmente contra, por experiência própria, as visitas obrigatórias.

Não pode ser esquecido que a biblioteca escolar tem uma função muito específica. Devemos redefinir o seu conceito tradicional de arquivo. Na escola, ela não tem a tarefa de catalogar e preservar livros. Não é um santuário onde devemos entrar em silêncio. É, isto sim, um labirinto vivo, palco e cenário de destinos múltiplos. Cada um deve percorrê-la da sua forma. O que será encontrado é de sua inteira responsabilidade. A funcionária deve apenas se manifestar quando solicitada. Sua presença tem que ser virtual. Não é ela a vigia dos livros, nem a inspetora de alunos, nem a mediadora oficial e onipotente entre o leitor e o livro.

Indo contra a concepção de arquivo, penso que a biblioteca deve ser uma livraria lúdica. É infrutífera toda e qualquer tentativa de separar, nas prateleiras, obras por género, período, país de origem do autor etc. Esta divisão visa a facilitar a localização dos volumes. Em última instância, serve apenas para diminuir o serviço da funcionária. Uma biblioteca pública, entretanto, não tem a função de servir aos funcionários, mas à sua clientela. Não estou querendo afirmar que os livros devam ficar jogados de qualquer maneira, mas sim que é contraproducente ordená-los meticulosamente por critérios altamente discutíveis. Vivemos um momento de completa indefinição de fronteiras entre ficção e história, conto e crônica, reportagem e conto etc. A biblioteca deve aceitar o parentesco entre as várias áreas, usando assim a palavra literatura na sua acepção mais ampla, tal como é feito nas áreas técnicas, onde se fala, por exemplo, na literatura sobre química orgânica. Literatura significa aqui tudo que foi escrito sobre.

A biblioteca escolar, já definida como o espaço da variedade, deve abolir estas fronteiras de área e de gênero e criar uma desordem mais produtiva, tal como, por exemplo, o agrupamento por faixa etária. Gostaria, no entanto, de pensá-la como uma coleção desordenada de livros. Acho que é a única forma possível de tentar ressuscitar a leitura na escola.

Se olharmos com atenção para as estantes onde centenas e centenas de volumes deixam à mostra apenas as suas lombadas, perceberemos que eles estão em gavetas mortuárias. A ordem e a classificação matam os livros. Separam-nos dos leitores. As estantes são apenas prateleiras com objetos mortos. É a desordem que cria condições de se manusear os livros. É através dela que estes emergem e se mostram de corpo inteiro, deixando de ser uma lombada desbotada, perdida entre infinidades de outras lombadas semelhantes.

A desordem facilita o súbito encontro com o livro esquecido, é o advento de sua ressurreição. Só neste ambiente pode nascer uma vontade, um desejo de possuir o livro via leitura. Quero citar algumas passagens de um ensaio de Walter Benjamin chamado “Desempacotando minha biblioteca”. Aviso, entretanto, que vou descontextualizar estas passagens: “Estou desempacotando minha biblioteca. Sim, estou. Os livros, portanto, ainda não estão nas estantes; o suave tédio da ordem não os envolve” (p.227).

O colecionador que espelha em seu quarto os milhares de volumes tem plena consciência de que a ordem faz com que este mar de palavras se torne monótono. Mais ainda, ele convida os leitores a habitar este anticosmos: “devo pedir-lhes que se transfiram comigo para a desordem de caixotes abertos à força, para o ar cheio de pó de madeira, para o chão coberto de papéis rasgados, por entre pilhas de volumes trazidos de novo à luz do dia”. O que nos interessa neste trecho é a revitalização dos livros pela desordem. Eles ganham vida. Passam a ter uma existência mais individualizada, mostram suas caras. Diz ainda Benjamin sobre o ato de colecionar que “toda paixão confina com o caos”.

Sobre a posse dos livros, questiona: “Pois o que é a posse senão uma desordem na que o hábito se acomodou de tal modo que ela só pode aparecer como se fosse ordem?” Se toda biblioteca é formada por peças diversas, querer implantar uma ordem muito rígida acaba acomodando os livros a uma não-existência. Romper com a ordem é a tarefa do bibliotecário autêntico, pois assim estará criando novos hábitos.

Quero agora definir o sentido que dou às palavras desorganizar e desordem. Busco nelas uma acepção bem específica. Desordenar significa aqui (e somente aqui) romper com a morte, ressuscitar. Inverto, para ilustrar minha exposição, uma célebre de Jorge Luís Borges: desorganizar uma biblioteca é uma forma silenciosa de exercer a crítica. Biblioteca em desordem significa, para mim, livros fora das estantes tradicionais. Significa livros expostos e não arquivados.

Como deve ser então o espaço interno da biblioteca? Pretendo novamente estabelecer um paralelo com o mundo empresarial.

O dono de um supermercado sabe que o seu produto precisa ficar de frente para o consumidor. Esta também é uma regra para os livreiros. EXPOR o produto numa altura adequada para que se estabeleça o contato visual sem grandes esforços. É esta a lição que nos lega o comerciante.

Trazendo estas regras de marketing para a biblioteca escolar, podemos dizer que única função deste temido lugar é PERMITIR O CONTATO COM O LIVRO. Por isso as estantes têm que ser feitas de forma que o livro possa ficar cara a cara com o leitor. É claro que isso vai exigir um novo conceito espacial da biblioteca. Mas tal mudança é imprescindível para o funcionamento pleno das atividades pedagógicas da escola.

Uma solução mais barata é a utilização de mesas, onde os volumes ficam deitados, mas com a face virada para o leitor. Outra saída são as bolsas de plástico transparente, penduradas no teto mas próximas do chão. Ou ainda através de ripas, levemente inclinadas, parafusadas na parede.

Esta nova mobília deve estar aliada a um conceito outro de espaço. Toda biblioteca tem que ter duas partes distintas. Numa ficará o acervo itinerante, destina ao empréstimo. Nesta sala os alunos devem ficar à vontade. Nenhuma imposição de silêncio, nenhuma preocupação com o manuseio dos livros. O espaço tem que ser de liberdade. Na outra sala ficará, se houver, o acervo permante (enciclopédias, dicionários, atlas, revistas etc.) ou simplesmente servirá como sala de estudo. Aqui sim o silêncio deve ser cultivado.

Esta nova biblioteca vai se valer de um recurso utilizado pela indústria livreira para despertar o interesse do consumidor: as capas. O livro brasileiro é uma verdadeira obra de arte. A sua capa atrativa fisga o leitor. Colocar os livros em ordem, um ao lado do outro, em arquivos mortos, é assassinar a sua individualidade e o seu poder de conquista.

Na biblioteca que povoa meus sonhos, o livro não nos virará o rosto.

Fonte: Revista Leitura: teoria e prática nº 26. Campinas/Porto Alegre: ALB/Mercado Aberto, dezembro de 1995. Também publicado in Revista Literária Blau – Porto Alegre, v. 4, n. 20, p. 20-24, março de 1998.

sábado, 7 de maio de 2011

Cresce movimento pela leitura e praça ganha ponto de livros

Madalena, idealizadora do projeto

Ester Leão
06/05/2011

A comunidade de Araçatuba tem uma razão muito especial para comparecer à Praça João Pessoa, no centro da cidade. Na última quinta-feira, 28 de abril, foi instalada na praça uma geladeira de livros. Trata-se do projeto “Leitura para todos” encabeçado pela comerciante Madalena Carlini, 69 anos. Algumas cidades do Brasil já possuem trabalhos semelhantes, que visam estimular a leitura, por meio de livros, em diversas camadas sociais. Na capital paulista, estações de metrô já adotaram o projeto em que a população deixa um livro e pega outro para leitura. Agora chegou a vez de a cidade de Araçatuba vivenciar esse tipo de iniciativa. Segundo a idealizadora do projeto, esse é o primeiro passo de uma série de ações direcionadas à leitura de livros.

Esta proposta é inovadora ao oferecer, gratuitamente, um livro ao cidadão que se interessar pela leitura. Madalena explica que o projeto é a realização de um sonho. “Sempre desejei proporcionar a leitura, gratuita, a todos da comunidade. Deixando esses livros expostos em pontos distintos da cidade para quem quiser”, comenta. A comerciante conta emocionada o resultado positivo do projeto, no dia 30 de abril. “No último sábado, várias pessoas foram até a geladeira para pegar um livro. O que me chamou a atenção foi o cuidado e o interesse de cada um. Jovens e adultos compartilharam a leitura dos livros na praça. Isso me deixou tocada”, diz. Madalena ressalta que foi criticada pela iniciativa, mas o desejo de compartilhar o conhecimento é maior. “Disseram que os livros seriam destruídos, mas ocorreu justamente o contrário. Todos que estiveram na praça leram os livros, uns devolveram outros levaram para suas casas. Isso”.

ESTRUTURA

Madalena diz que a escolha de uma geladeira para abrigar os livros tem um significado muito especial e faz uma analogia. “A geladeira guarda o alimento para o corpo, mas esta abriga o alimento para alma - o conhecimento!”, define. Ela, que se considera uma ambientalista, afirma que a geladeira desativada é ecologicamente mais correta do que o uso de caixas ou suporte de madeira.

A estrutura foi colocada sobre uma base de concreto e permanece aberta para todos que desejam ter acesso aos livros. Na visão da comerciante, despertar o interesse pelo livro na comunidade é o objetivo maior, buscando desenvolver e recuperar o hábito da leitura entre crianças e adolescentes, estendendo aos adultos.

Madalena diz que o projeto criado por ela tem apenas uma regra - Pegue, leia e compartilhe. “Se o cidadão tiver livros em casa que queira doar, basta levá-los até a praça e colocá-los dentro da geladeira. Desta forma, todos terão acesso ao conhecimento”. Parte dos livros, bem como a geladeira, foi doada por amigos. “Esse projeto é o primeiro de uma série que pretendo desenvolver, no mesmo segmento. O próximo passo é instalar outra estrutura na rodoviária da cidade”, enfatiza.