quinta-feira, 1 de julho de 2010

Ler rima com prazer


O sem-teto Severino Manoel de Souza nos pegou a todos de surpresa quando em 2006 sua história chegou à mídia. O catador de papel havia inaugurado em setembro de 2005 uma biblioteca com livros encontrados no lixo em um prédio invadido no centro de São Paulo, na Avenida Prestes Maia. Os usuários eram os próprios moradores do prédio, cerca de 1.800 pessoas devidamente cadastradas em um computador doado a Severino. No acervo, entre os mais de 16 mil títulos, Machado de Assis, Érico Veríssimo, Jorge Amado, Gabriel García Márquez e tantos outros. O prédio foi desocupado e Severino ficou sem o seu acervo.

Com a perseverança que só os corajosos têm, o pernambucano nascido no sítio Olho D’Água Seco montou em Itapecerica da Serra, em São Paulo, uma nova biblioteca que já conta com 4.500 títulos. Para ele, Machado de Assis é o preferido e, durante a entrevista à Revista da Cultura, comentou que neste ano são comemorados os 100 anos da morte do escritor e colocou até uma placa na sua biblioteca lembrando o público sobre a data. Severino diz que aprende muita coisa boa nos livros e gosta especialmente de romance e poesia. E ele é realmente um apaixonado por livros. “Para mim, são como uma boa sobremesa. Hoje mesmo, depois do almoço, achei um ‘livrozinho’ de Camões, sentei na beirada da cama e fiquei lendo”.

A história de Severino contraria todas as estatísticas e também os nossos aparentes motivos para não pegarmos um livro para ler. “Meus pais nunca leram pra mim” ou ainda “a professora só dava coisa chata” são as principais respostas às perguntas sobre o fato de alguém não ter o hábito da leitura.

Culpas a parte, o que pode ser feito realmente para mudarmos o quadro apresentado nas pesquisas – veja o resultado da mais recente delas no box da página ao lado – e começarmos enfim a desenvolver o gosto pelos livros? “Não existe propriamente uma receita. Digo sempre que quem não lê não sabe o que está perdendo”, afirma o bibliófilo José Mindlin. “Inicialmente, é importante apresentar a leitura como fonte de prazer, e não como obrigação”, ressalta. “Tanto a família como a escola podem ser instrumentos fundamentais para despertar esse interesse. Colocaria a família em primeiro lugar, mas, na hipótese de esta não ter biblioteca ou interesse pelos livros, passaria essa responsabilidade à escola, onde a tarefa poderia ter condições de ser executada”, complementa Mindlin.

Para Pedro Herz, presidente da Livraria Cultura, os pais são os principais responsáveis pelo incentivo à leitura. “Antes de adquirir o hábito, os filhos querem imitar os pais. Um bom leitor se faz fundamentalmente em casa, mas toda colaboração através de exemplos é sempre muito útil”.

Uma das sugestões de Mindlin para disseminar o gosto pela leitura é que existam muito mais bibliotecas públicas e escolares: “Nos Estados Unidos, por exemplo, qualquer cidadezinha tem uma biblioteca circulante que, se não possuir o livro procurado, trata sempre de obtê-lo”, diz o bibliófilo. “Ter o livro não devia ser condição de leitura. O acesso a estes deve ser feito por bibliotecas públicas e escolares, independentemente dos esforços para estabelecer o contato mais pessoal de crianças e jovens com o livro”, explica.

É preciso formar leitores

O Brasil tem hoje cerca de 650 municípios sem nenhuma biblioteca, mas há números que são promissores. Segundo José Castilho Marques Neto, secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura, o PNLL, articulado pelos ministérios da Cultura (MinC) e da Educação (MEC), que reúne um conjunto de projetos, programas, atividades e eventos na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas, há aproximadamente 5 mil bibliotecas públicas, 10 mil comunitárias e quase 55 mil escolares. “É um número já expressivo, embora saibamos das imensas deficiências de acervo, instalações etc.”, diz Castilho. “Quanto às livrarias, falta um número ainda maior, conforme o levantamento da ANL, principalmente se pensarmos que o número das 2.600 livrarias existentes cobre cerca de 600 cidades do país”, explica o secretário.

Em São Paulo, a Secretaria da Cultura do Estado mantém o programa “São Paulo: um estado de leitores”, que caminha a passos largos desde 2003 para disseminar o hábito de leitura. Além da implantação de bibliotecas em vários municípios, salas de leitura estão sendo criadas em hospitais, penitenciárias, condomínios de baixa renda e associações de bairros. “Mas cabe notar, no entanto, que não basta criar bibliotecas, é preciso também formar bibliotecários interessados”, ressalta José Mindlin. Nesse sentido, José Luiz Goldfarb, coordenador do “São Paulo: um estado de leitores”, destaca que a Secretaria da Cultura oferece o curso “Entre na roda” para a formação desses profissionais “É muito importante capacitar o profissional que vai atuar nas bibliotecas e salas de leitura. São os multiplicadores do gosto pela leitura e eles têm papel fundamental junto ao público.”

Goldfarb comenta ainda a importância da revitalização das bibliotecas existentes. “Em alguns municípios, o acervo da biblioteca é de 20, 30 anos atrás, e é necessário fazer a atualização para que o leitor se sinta atraído a freqüentar aquele espaço”, diz. Para cooperar com a modernização dos acervos, a Livraria Cultura tornou-se parceira da Secretaria da Cultura neste programa e lançou em outubro de 2007 o projeto “Adote Biblioteca”, cujo objetivo é enriquecer as bibliotecas públicas de 30 municípios de São Paulo, selecionadas por Goldfbarb. No site da Cultura – www.livrariacultura.com.br - é possível comprar um livro e doar a uma dessas cidades. “Esse projeto vem ao encontro a uma das nossas missões, a de facilitar o acesso ao livro e conseqüentemente à leitura e à cultura”, explica Pedro Herz.

O secretário José Castilho concorda com Mindlin: “A simples presença da biblioteca estimula apenas o leitor já ‘iniciado’, mas não aquele que precisa ser estimulado por mediadores de leitura, capacitados para isso, que transmitam por meio de atividades permanentes o gosto pela leitura. Não basta apenas edificar, modernizar e reformar bibliotecas, é necessária a mediação para que a ação final, que é ler, ter o gosto pela leitura para sempre, prevaleça”, conclui.

A pedagoga Cristina Antunes, que trabalha com José Mindlin há quase 30 anos, conta que o que mais impressiona nos Estados Unidos é a relação entre as bibliotecas americanas e a comunidade – a consciência da população sobre a importância das bibliotecas e destas sobre o seu papel. “Essas bibliotecas realmente fazem parte do cotidiano das pessoas, do mesmo modo como ir ao cinema, ir ao parque, ir ao museu. Ir à biblioteca é um ‘programa’ prazeroso, pois elas oferecem um sem-número de atividades”, explica. “Por outro lado, a postura das pessoas que trabalham nas bibliotecas, o conhecimento que, em geral, os bibliotecários têm do papel que desempenham e da razão da existência daqueles acervos muda completamente a qualidade do atendimento ao público, seja este público uma criança ou um pesquisador especializado. Esse tipo de relação biblioteca-comunidade é muito pouco explorada em nosso país”, conclui.

Além da necessidade de criação de novas bibliotecas, é fundamental a formação daqueles que as dirigem, dos que atendem ao público e dos animadores das atividades ali desenvolvidas, para que elas sejam vistas como fonte de prazer. E isso deve começar nas bibliotecas escolares. Para o coordenador do Livro e Literatura da Secretaria da Cultura de Porto Alegre, RS, Baiard Brocker, o hábito da leitura pode ser incentivado desde as séries iniciais através de atividades diversas, como hora do conto, feira de livros, feira de troca de livros, visita de escritores e dramatização de textos de literatura infantil. Para ele, é essencial a dinamização das bibliotecas escolares: “É fundamental que a biblioteca esteja inserida na programação de toda a escola, pois é nela que os alunos devem procurar as informações para complementar tarefas escolares e também é nela que eles devem ser estimulados a procurar prazer através da leitura”.


A troca que estimula

O interesse pode vir de formas diferentes, e o incentivo da família, do professor, de um bibliotecário ou de um vendedor de livros pode mudar totalmente a relação com a leitura. Mas é importante que escolas, governos, livrarias, associações de bairros e ONGs da área ajudem a estimular a formação de leitores. “A idéia equivocada, mas que ainda se espalha entre nós – a de que o brasileiro não gosta de ler – é facilmente derrubada quando o Estado ou organizações da sociedade dão acessibilidade à população”, diz o secretário José Castilho Marques Neto.

Um bom exemplo desse tipo de ação é a Feira de Troca de Livros e Gibis organizada pela prefeitura de São Paulo. Realizada nos parques da cidade, aos domingos, a feira acontece pelo segundo ano consecutivo. “As pessoas adoram, em cada parque é um público e você percebe isso pelos livros trocados”, conta Maria Zenita Monteiro, coordenadora do Sistema Municipal de Bibliotecas da Prefeitura de São Paulo. Na feira podem ser trocados livros e gibis por outros expostos em bancas. Não há nenhuma relação com o valor do livro, a exigência é que estejam em bom estado.

Acompanhada pelos avós Dimas Canteiro e Luci Góes Penha, Giovana Penha da Conceição, de 10 anos, chegou à feira realizada no Parque do Ibirapuera com uma sacola de livros e gibis. “Eu trouxe um monte de coisa, trouxe até a minha mala cheia de livros. Gosto de mistério, de suspense e de gibi”, conta a estudante. “A minha professora passa um monte de livros pra gente ler. A gente lê, faz trabalhos e aí eu fico com mais vontade de ler. Eu leio qualquer um, os que ela indica e outros também”. E o avô entusiasmado não pensou duas vezes antes de levar a neta. “Eu li no jornal que teria essa feira e ela lê muito, essa menina é incrível! Ela pega um livro e, se gosta, devora”, diz. “Falei com a avó, ‘vamos levá-la, vamos separar o que ela tem de livro, pra escolher o que ela vai trocar’”. Sobre a importância de ter o hábito de ler, Dimas Canteiro afirmou: “É muito importante. A leitura é o início da educação de uma criança; antigamente a gente não recebia tanto incentivo”.


Para Baiard Brocker, o acesso ao livro existe, não existe é interesse da maior parte das pessoas pelo livro, pois isso não é valorizado. “Por exemplo, que presentes são dados, via de regra, às crianças em situações de aniversário, Natal etc.? Geralmente bobagens plásticas e eletrônicas.” Segundo o coordenador, se mais livros fossem comprados, mais barato seria seu custo. “Para que mais livros sejam comprados, é necessário que se realizem campanhas maciças de valorização do livro e, principalmente da leitura, pois, como diz Jean Foucambert, no livro A Leitura em Questão (esgotado), devemos desenvolver mais uma atitude – ler – do que o objeto – livro”, conclui.

Mais e mais leitores

Outro fator importante que pode colaborar para a divulgação do hábito de leitura no Brasil é a possibilidade de ampliação do número de leitores por exemplar de um mesmo livro. Ações nesse sentido, como a Feira de Trocas, por exemplo, podem suprir a carência daqueles que têm a vontade de ler, mas não têm condições de adquirir o livro.

Para José Mindlin, é preciso trabalhar para o surgimento do hábito de transferência. “Quando digo que ter o livro não deveria ser condição de leitura, estou pensando naquelas pessoas que não têm possibilidade de adquirir livros, mas têm o desejo de ler”, explica. “Ter o livro também é uma coisa muito boa. Eu que o diga...!”, brinca o maior bibliófilo do Brasil.


A própria história da Livraria Cultura começou dessa forma, quando Eva Herz, mãe de Pedro Herz, teve a idéia de abrir um serviço de aluguel de livros. “Ela achava justamente que quanto mais pessoas lessem o mesmo livro, melhor”, conta Pedro. “Nesta mesma linha de pensamento, lançamos há alguns anos um serviço chamado ‘Mais Leitores’, no qual recompramos livros vendidos para clientes com até seis meses de uso e em bom estado. Depois, vendemos apenas em nosso site este mesmo livro pela metade do preço do exemplar novo”, explica o livreiro.

Em Brasília, a Parada Cultural da ONG Projetos Culturais T-Bone instalou 17 bibliotecas nos pontos de ônibus da Asa Norte que funcionam 24 horas. O empréstimo requer apenas um cadastro feito no local e o potencial leitor, enquanto aguarda a sua condução, pode desfrutar da companhia de um bom livro. E bem sabemos que esse tempo de espera nem sempre é tão curto quanto gostaríamos.

Projetos existem, e muitos. Novas bibliotecas e salas de leitura são inauguradas com certa freqüência, ONGs criam projetos na área, livrarias lançam programas, governos promovem feiras de trocas e bibliotecas ambulantes, contadores de histórias iniciam os pequenos, e líderes comunitários, de grão em grão, vão fazendo o que podem.

Para o pernambucano Severino, o que falta são campanhas publicitárias visando a divulgação do livro e da leitura. “Para incentivar o hábito, é importante que tenha propaganda nas revistas, nos jornais, na televisão, no rádio”, sugere. “Deviam fazer comerciais sobre livros e escritores, assim as pessoas leriam mais”. E complementa: “É como a moda, antes dela sair, sai primeiro a propaganda e aí as pessoas já vão em cima. Com o livro devia ser igual”.

Fica o recado de quem, apesar da vida dura, e talvez até por isso mesmo, reconhece o prazer e a viagem que só a leitura de um bom livro pode proporcionar.

A gente não que só comida

A editora Rita Tavares há dois anos costuma comprar livros e doá-los à comunidade de Paraisópolis, em São Paulo. Mensalmente um livro é escolhido por eles, comprado por ela em sites de lojas e enviado diretamente à comunidade. “Por um tempo entregaram, mas depois deixaram de entregar, alegando dificuldade de acesso, claro, por ser uma favela”. Rita só conseguiu realizar a entrega dos livros doados com a Livraria Cultura. “Fui pessoalmente à Livraria, combinei tudo com eles, foram feitas consultas ao setor de entrega... foi uma mobilização, mas deu certo”. A editora destaca que acabou fazendo um casamento entre dois serviços da Cultura: doa livros para Paraisópolis pela Entrega Foguete e aproveita para enviar algum exemplar também pelo “Adote Biblioteca”. Rita alerta para o formato da doação. “Doei o Harry Potter para Paraisópolis e no mês seguinte eles me pediram novamente. Afirmei que já tinha mandado e eles explicaram que havia uma fila de 57 pessoas para ler o único exemplar”, conta. “Isso demonstra que as pessoas têm vontade de ler”. Essa via de mão dupla pode definir um futuro leitor. Não adianta impor uma leitura, mas sim ligá-la sempre ao prazer, a algo que vai trazer bons momentos, e não a uma obrigação. “Existe um intervalo muito grande entre o que eu acho que as pessoas querem ler, e o que realmente as pessoas querem ler, por isso peço que eles indiquem os livros”. Fica para Rita a certeza de que eles serão lidos.

Matéria publicada em junho/2008

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